Estado da Nação. Toda a oposição ao ataque (mas a esquerda poupa Cabrita)
Como se previa, o chefe do Governo aproveitou o último grande debate parlamentar da sessão legislativa para celebrar o fim da pandemia que se aproxima e o início de uma chuva de milhões de euros com origem na UE
Finda a "geringonça" em 2019, este foi, mais uma vez, um debate parlamentar do Estado da Nação em modo oito contra um. De um lado, os socialistas (e em particular, claro, o chefe do Governo); do outro, PSD, Bloco, PCP, CDS, PAN, PEV, Chega e Iniciativa Liberal, todos criticando a governação.
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Dos antigos parceiros dos socialistas no entendimento de esquerda que governou o país de 2014 a 2019, BE, PCP e PEV, não se ouviu nada que se parecesse com um elogio ao Executivo; e dos partidos à direita do PS muito menos, evidentemente. A diferença, na verdade, foi que à esquerda do PS ninguém se preocupou em explorar a fragilidade do atual elo mais fraco do Governo, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. PSD, CDS e Chega, pelo contrário, fizeram-no, com grande intensidade.
"Abrir uma janela de esperança"
António Costa começou na terça-feira a ensaiar publicamente o discurso que ontem acabou por fazer no Parlamento ao dizer que no final do verão o país viverá em relação à pandemia de covid-19 o seu momento de "libertação total". Ontem, abrindo o debate parlamentar do Estado da Nação - o antepenúltimo da legislatura - retomou a ideia afirmando que "este é o momento de abrir uma nova janela de esperança e aproveitar as oportunidades irrepetíveis que os próximos tempos nos trarão".
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Ligando numa sequência temporal o fim da pandemia que se aproxima e o início a curto prazo de um novo quadro de financiamento comunitário, Costa esforçou-se por passar a imagem de que o país está agora a iniciar um novo ciclo. E comprometeu-se explicitamente em manter-se ao leme da nau da governação até ao final da legislatura (recusando assim a hipótese de tentar voos políticos europeus).
"Abrir a janela de esperança" é "o nosso dever, o meu dever, o dever que todos temos de honrar".
Mais tarde, o deputado único da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, haveria de retomar a questão da mudança de ciclo dizendo que "o PS tem medo que corresponda também a um fim de ciclo político", promovendo por isso "duas narrativas particularmente enganadoras e particularmente desinformativas": a de que "vai ser o campeão do desconfinamento" (quando foi o partido "que durante meses veio à Assembleia da República defender estados de emergência, com poderes excessivos, desnecessários, limitadores das liberdades individuais e o partido que mesmo depois dos estados de emergência continuou a aplicar medidas restritivas que ainda hoje não fazem sentido"); e a narrativa de que o "PS vai ser o campeão do crescimento" - sendo "quase cómico que o partido que há mais tempo governa em Portugal durante um período em que Portugal foi ultrapassado sucessivamente e entrou em declínio relativo em relação aos seus parceiros europeus venha agora aqui arvorar-se em campeão do crescimento".
Vacinar jovens e crianças até setembro
O debate iniciou-se com o primeiro-ministro anunciando que "é tempo de alargar" a "ambição" no processo de vacinação - e fazê-lo "garantindo também a proteção das crianças e jovens": "Devemos fazê-lo atempadamente, de modo a que o novo ano letivo se possa reiniciar sem risco de novas interrupções do ensino presencial." Assim - acrescentou - "tudo está preparado para nos fins de semana entre 14 de agosto e 19 de setembro serem administradas as duas doses de vacina às cerca de 570 mil crianças e jovens entre os 12 e os 17 anos".
Ao mesmo tempo, anunciou também mais 900 milhões de euros para programas de promoção do "sucesso escolar" nos dois próximos anos letivos. "A suspensão das atividades letivas presenciais afetou o processo de aprendizagem de muitos alunos e acentuou as desigualdades. É por isso essencial executar, ao longo dos próximos dois anos letivos, um ambicioso Plano de Recuperação das Aprendizagens." O plano prevê "um aumento do número de professores e técnicos especializados nas escolas, designadamente através do reforço de créditos horários e do alargamento dos programas de tutoria para apoiar os alunos com maiores dificuldades".
Milhões, milhões e mais milhões
Além dos 900 milhões para o tal programa de recuperação de aprendizagens, não faltaram outros milhões no discurso com que Costa abriu o debate. O chefe do Governo explorou intensamente o facto de o país estar prestes a começar a ser inundado de novos fundos provenientes da UE (ou através do Plano de Recuperação e Resiliência ou através do novo Quadro Financeiro Plurianual, que será concretizado nacional no programa PT2030).
Tudo somado, "temos um total de 40 mil milhões de euros ao serviço da transformação da economia e da sociedade". Pelo meio anunciou várias verbas parcelares: 8,6 mil milhões para a agenda do "desafio demográfico" e do combate às desigualdades sociais; 15,5 mil milhões na agenda da digitalização e das qualificações; 6,6 mil milhões para a coesão territorial; 1,383 mil milhões para o SNS (provenientes do PRR); 1,1 mil milhões para "reforçar a aposta na ciência e na inovação".
Cabrita na mira
Coube aos partidos à direita do PS a tarefa de atacarem Costa não só pelo estado da nação como também (na expressão do CDS) pelo "estado da governação". Explorando implicitamente os casos relacionados com o ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita, Adão Silva, líder parlamentar do PSD, afirmou que "os portugueses têm sido valentes, corajosos, mas o Governo, apesar dos milhões que aqui anunciou apresenta-se como um Governo cansado e desgastado". Ou seja, é "um Governo que, pressente-se pelas imensas trapalhadas, não tem mão para reerguer o país".
Pelo CDS-PP, Cecília Meireles também atacou Cabrita afirmando que este assinou um despacho autorizando os festejos do Sporting - o que levou aliás o primeiro-ministro a reconhecer que não conhecia este despacho nem deu sobre ele nenhuma instrução. Já André Ventura, do Chega, pediu explicitamente a demissão do ministro - e explicou porque Costa não o faz: "Todos lhe pedem que este homem deixe de ser ministro da Administração Interna. Eu sei que lhe dá jeito, porque enquanto atacam o MAI ou a ministra da Justiça, o senhor primeiro-ministro foge como um para-raios aos ataques de que está a ser alvo." Ventura ironizou inclusivamente com o facto de Cabrita ter ficado sentado num dos extremos da bancada governamental: "[Está] tão fora da bancada que quase está nas escadas à espera que alguém lhe tire o lugar."
Governo atento às moratórias
A questão foi levantada por Jerónimo de Sousa, que disse que o Governo "não demonstra vontade de resolver o problema" das moratórias, cujo "fim abrupto já em setembro" vai ocorrer "sem que esteja assegurada a normalidade da atividade económica e o perigo real de milhares de famílias com crédito e milhares de empresas".
Sobre este assunto, António Costa disse que é um tema acompanhado "com muita atenção e com muito cuidado" pelo Governo e disse que até agora têm sido ultrapassadas a maioria das situações através de acordos entre os credores e os devedores. Contudo, deixou uma promessa: "Se for necessário, nós tomaremos as medidas que sejam necessárias para que ninguém fique para trás".
Outro tema do líder comunista foram os "atropelos aos direitos laborais" (assunto aliás também central na intervenção da coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins). "Não pode ser tolerada a chantagem com os despedimentos coletivos ou outros atropelos aos direitos que está em curso", disse Jerónimo de Sousa, acrescentando que o executivo socialista continua "a fechar os olhos à desregulação dos horários que está em curso atingindo a vida e saúde dos trabalhadores".
Na resposta, Costa anunciou que o Governo vai apresentar uma proposta de lei para combater a precariedade, visando um regime legal "que assegure e garanta a dignidade de trabalho para todos aqueles que trabalham". "Relativamente à precariedade, foi viabilizado pelo grupo parlamentar do PS o diploma do PCP de forma a que, precisamente, possamos fazer na especialidade, trabalho entre a proposta de lei que o Governo apresentará e o projeto-lei que o PCP apresentou", anunciou. Na sua intervenção inicial, o chefe do Governo tinha também advogado a necessidade "de melhor regular o teletrabalho e o trabalho em plataformas digitais, e, por outro, a enorme desproteção social que a precariedade acarreta". Segundo disse, a pandemia tornou "patente as formas chocantes de esconder verdadeiras e próprias relações de trabalho, através da informalidade, intermitência. rotatividade, atividades supostamente independentes ou mesmo empresariais".
"Este trabalho tem de ser reconhecido, valorizado e enquadrado, com a necessária proteção e dignidade. Sejamos claros: por exemplo, as empresas de trabalho temporário são um instrumento de flexibilidade, mas não podem ser um instrumento de precarização", afirmou. Nem PCP nem Bloco acham porém que esta preocupação seja a única a ser atendida. Ambos os partidos insistem em revogar as normas postas no Código do Trabalho durante a troika, nomeadamente as que embarateceram as indemnizações por despedimento.
"Impedir abusos" nos preços da energia
Foi também na sequência de uma intervenção do PCP, desta vez através do deputado Duarte Alves, que Costa prometeu em nome do Governo medidas para "impedir abusos em matéria de preços da energia". O parlamentar comunista tinha-se insurgido contra as práticas das grandes petrolíferas e exigiu o controlo público do setor energético.
Na resposta, o primeiro-ministro disse que o Governo recebeu um relatório da Entidade Nacional de Segurança Energética segundo o qual parte significativa do aumento "explica-se por um abuso das margens de comercialização". Acrescentando: "Estamos a analisar este relatório, mas estamos também a criar o instrumento legislativo para que o Governo possa intervir e impedir abusos em matéria de preços da energia."
Mais 1,4 mil milhões para o SNS
No discurso com que abriu o debate, o chefe do Governo anunciou que seriam alocados ao SNS 1383 milhões de euros ao SNS através do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência). Catarina Martins viu nisto não um reforço mas apenas a transferência para outro lado de uma verba já prevista: "Em vez de termos mais investimento mudamos o investimento de um sítio para o outro e não se fortalece o SNS." Costa desmentiu: "Não se trata de transferir de um lado para o outro" mas sim de "acrescentar" e de "reforçar".
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