Política
20 março 2023 às 00h00

"Obras inúteis" custaram 900 milhões. 150 são para "parar tsunamis"

As obras inventadas denunciadas por antigos governantes de Jardim e Albuquerque e que o CDS, hoje aliado do PSD, chamou de "inúteis" não são "passado". Oposição assegura que "o saque ao erário público" não parou. O "abraço de urso" do PSD está a reduzir os centristas à insignificância eleitoral.

Artur Cassiano

Quase 900 milhões de euros em "obras inventadas", a expressão usada por Sérgio Marques e Miguel Sousa [antigos governantes de Miguel Albuquerque e de Alberto João Jardim], ou "obras inúteis (...), despesas inúteis, desperdícios sem qualquer justificação, obras sem qualquer utilidade" como José Manuel Rodrigues, então líder do CDS e atual presidente da Assembleia Legislativa Regional, lhes chamou em 2011, a meses das eleições regionais desse ano.

As contas dos partidos da oposição, em particular PS, IL e PCP, são simples de fazer: mais de 470 milhões em "obras inventadas" do passado [por serem desnecessárias], 150 milhões para o prolongamento do molhe da Pontinha - que Pedro Calado, autarca do Funchal e ex-vice presidente do governo regional, diz ser "importante" para proteger o Funchal de "tsunamis", mas que o Estado não incluiu no PRR por não ser "importante"- , 30 milhões para um teleférico em plena área protegida no Curral das Freiras e 240 milhões "injetados por Miguel Albuquerque nas falidas sociedades de desenvolvimento".

"Milhões e milhões desbaratados em obras megalómanas, inúteis. Mas existem muitas outras. E não se trata de um assunto do passado. É um assunto do presente. É assunto sobre o qual Miguel Albuquerque tem responsabilidades e que continua numa lógica despesista. Proliferam o cimento e o betão em vez de se apostar da habitação e na saúde", afirma Sérgio Gonçalves, líder do PS Madeira.

Élvio Sousa, líder do grupo parlamentar do JPP, considera que as "obras inventadas" que refletem "os 6 mil milhões da dívida colossal da Região, mil milhões dos quais foram escandalosamente escondidos das instituições de fiscalização e de auditoria" ainda hoje têm peso "no custo elevado de vida, no IVA a 22% e nas tabelas de IRS a carregar a classe média".

Em suma, diz, as "obras inventadas" foram para o PSD "uma espécie de abono família, para sustentar clientelas na manjedoura do Orçamento regional versus fundos comunitários".

Miguel Albuquerque, em declarações ao DN, afirma que a dívida não é "asfixiante" e que "neste momento não é uma condicionante que o limite" até porque espera conseguir "uma percentagem da dívida em relação ao PIB à volta dos 90%".

DestaquedestaqueLíder do PSD afirma que não houve um esbanjar de dinheiro, mas antes "uma obra monumental de desenvolvimento integral, por todos reconhecidas"

Para Ricardo Lume, deputado do PCP, "a questão determinante é a de derrotar este regime, romper definitivamente com o jardinismo, com ou sem Jardim. É impedir que nesta Região se prolongue a governação ditada por uma nova teia clientelar e orientada para assegurar o rumo de exploração e empobrecimento implantado nos últimos 50 anos".

Até porque, explica, o que existe é "mais do mesmo" e "não satisfeitos com o anterior esbanjamento de mais de 45 milhões de euros [o negócio das algas no Porto Santo]", os "renovadinhos de Miguel Albuquerque querem continuar o saque ao erário público (...)". "A "famosa" Lagoa das Águas Mansas volta a ser mais um foco de esbanjamento de milhões", diz, entre outros exemplos de um "carrocel do assalto aos dinheiros públicos para saciar clientelismos antigos e de hoje".

"Na Madeira fazem-se obras por fazer. Mesmo as que são necessárias, não resultam de estudos (...). Eles sabem tudo, quando não sabem rigorosamente nada. É a "chico espertice" ao serviço do "pato bravismo"", afirma Nuno Morna, líder do IL madeirense. E com isto, resume, "alimenta-se uma verdadeira pirâmide alimentar, onde no topo moram os "predadores" criados pelo regime, que tudo sugam. Na base o madeirense comum, com salários por volta do mínimo, sem perspetivas de futuro para si e para os seus filhos". Ou, como dizia "Alberto João quando falava numa "máfia no bom sentido"", recorda.

Miguel Castro, do Chega, fala em obras de "finalidade no mínimo duvidosa" e de outras sem "utilidade absolutamente nenhuma" e "algumas delas são mesmo obras fantasma".

DestaquedestaqueSérgio Marques vai ser ouvido hoje na comissão de inquérito sobre as "obras inventadas", as "pressões" e os"favorecimentos" do governo regional a grupos económicos.

Em 2011, a caminho das eleições regionais de outubro, que Jardim ganharia com maioria absoluta ["mas os gajos em 2012 querem eleições para me porem na rua, para me afastar. A certa altura eu tinha mais adversários dentro do partido do que na rua (...) o problema era aqueles sacanas lá dentro do partido", recordou recentemente, no DN, o ex-líder do governo Regional], o CDS, então liderado por José Manuel Rodrigues, atual presidente da Assembleia Legislativa Regional, no seu "Roteiro" pela Madeira chamou-lhes "obras inúteis" e criticou de forma "severa" as políticas de Alberto João Jardim que mereciam "condenação" pela "incompetência" e pela "péssima" maneira de como "geriram os dinheiros públicos da região nos últimos anos".

O PS, na semana passada, fez precisamente o mesmo: umas jornadas parlamentares dedicadas às "obras inventadas" na sequência das declarações de Sérgio Marques e Miguel Sousa ao DN, que causaram a abertura de uma comissão de inquérito.

"Despesas inúteis, desperdícios sem qualquer justificação, obras sem qualquer utilidade", afirmou José Manuel Rodrigues há 12 anos.

Miguel Sousa, em declarações ao DN, na reportagem Os "gajos" que tramaram Jardim, os milhões de obras "inventadas" e os governantes "afastados" por empresários, publicada a 15 de janeiro, e que teve a coordenação económica do governo de 1988 a 1992, chama-lhes "obras inventadas". A partir de 2000 "fizeram tudo o que era pensável e impensável, o necessário e o desnecessário, o que nunca vai ser preciso, o que nunca ficou pronto nem vai ficar pronto, foi um esbanjar de recursos financeiros que não tínhamos (...). Ninguém fazia contas, toda a gente autorizava tudo, ninguém se opunha a isso (...). E pronto, a Madeira foi à bancarrota. E ainda hoje temos essa dívida".

Sérgio Marques, antigo deputado na Assembleia Legislativa (1984 a 1999), eurodeputado (1999 a 2009) e secretário regional, entre 2015 e 2017, no primeiro governo de Miguel Albuquerque, e agora também ex-deputado no parlamento nacional, também nessa reportagem, refere "um déjà vu. E a dada altura começaram a inventar-se obras, quis-se continuar no mesmo esquema de governo, a mesma linha. Obras sem necessidade, aquela lógica das sociedades de desenvolvimento, todo aquele investimento louco que foi feito pelas sociedades de desenvolvimento".

José Manuel Rodrigues, em 2011, para que dúvidas não houvesse, deixou claro que "aqui, o CDS sempre foi oposição ao PSD e o resultado de domingo demonstra que as pessoas souberam distinguir e apostaram no CDS como alternativa" e que a "dívida criada pela governação PSD" tinha uma leitura óbvia: "Jardim foi o pioneiro e o coveiro da autonomia".

Meses depois, no parlamento em Lisboa, em resposta a uma deputada do PCP, na ressaca da intempérie de 20 fevereiro de 2010, foi ainda mais incisivo e colocou em causa "o modelo de desenvolvimento económico que foi adotado, assente sobretudo em obras públicas, em investimento público, em muitas obras que não têm qualquer utilidade e que representam apenas e só despesa pública". E não evitou a provocação: "O que foi adotado, durante 30 anos na Madeira, até deveria ter o apoio do PCP porque é um modelo claramente estatizante".

Os anos passaram, mas a opinião manteve-se. Em 2018, a cerca de um ano das regionais de 2019, era já Rui Barreto líder do CDS, José Manuel Rodrigues não perdia o foco: "Estes são os resultados das políticas sociais-democratas, e se alguém tem responsabilidades é, apenas e só, o PSD que governa a Madeira há 42 anos (...), este governo mantêm o sufoco fiscal sobre quem investe, trabalha e produz riqueza na nossa terra (...), uma pesada carga fiscal que atrofia o investimento, a competitividade e o crescimento económico (...). Pouco ou nada mudou (...). Este é um governo conformista, sem coragem, sem ousadia e ambição para fazer as reformas necessárias ao presente e ao futuro da Região".

E tal como em 2011, as "obras inúteis" voltavam em 2018 ao discurso do CDS: "Depois de um período de estagnação [Miguel Albuquerque] parece querer regressar à política do betão e das obras inúteis, a ver se rendem algumas inaugurações e votos".

Em 2019, a seis meses das eleições, Rui Barreto alinhava nas críticas: "O PSD dá sinais de desorientação e falta de adesão à realidade. Já não percebe quais são as principais prioridades, e uma delas, a mais importante, é a saúde. É preciso investir na saúde e dar segurança e dignidade às pessoas".

Meses mais tarde, a dois dias das regionais era claro ao afirmar que "pela primeira vez desde que foi inaugurada a democracia na Madeira, estamos num momento único para terminar com o poder absoluto" - que tanto o CDS criticou durante 43 anos - , acabar com a "desilusão" Miguel Albuquerque, cuja governação foi fortemente atacada, e evitar "geringonças" na região.

Ficou meia geringonça. E agora quase geringonça nenhuma. As últimas sondagens conhecidas colocam o CDS de Rui Barreto, caso não fosse em coligação, no patamar mais baixo de sempre. Tradução um: reduzido à insignificância eleitoral. Tradução dois: não eleger sequer um deputado.

O amargo de boca? Se a "ala esquerda" centrista alinhada com José Manuel Rodrigues - que deu ao CDS os "melhores resultados de sempre" - tivesse travado a "ala direitista" de Rui Barreto, o CDS não "estaria hoje em vias de extinção" na Madeira e não teria tido o "quarto pior resultado desde 1976. Só 8 mil pessoas votaram em nós". Na verdade, foi ligeiramente mais: 8246 votos.

As frases citadas, de fonte da estrutura centrista madeirense, revelam um crescente incómodo com o "abraço de urso" que "calou" o CDS e que pode "abrir portas" ao Chega. Ao Chega? "Sim, é bom não esquecer os problemas que o atual líder teve com aquelas transferências de um financiador do Chega para a conta bancária dele e de mais quatro membros do partido. O Ricardo Vieira [antigo líder do CDS Madeira] até disse aqui num programa de rádio que o Rui para fugir à lei do financiamento dos partidos, sujou as mãos com esse expediente".

Ricardo Vieira, no "Debate da Semana", programa da TSF Madeira, disse ainda ser "curioso o senhor presidente do Governo vir dar confiança política a um secretário indicado pelo CDS. E depois, esse mesmo secretário, após uma comissão política do CDS, vir dizer que tem a confiança política do presidente do Governo que é de outro partido". E terminou a frase assim: "Nesta Região tudo se passa".

DestaquedestaqueSérgio Marques denunciou, em declarações publicadas em 15 de janeiro no Diário de Notícias, "obras inventadas a partir de 2000", quando Alberto João Jardim (PSD) era presidente do executivo madeirense, e grupos económicos que cresceram com o "dedo do Jardim".