Política
06 dezembro 2022 às 00h15

Maria João Avillez: "Costa não tem instinto reformista. Com maioria absoluta e PRR poderia reformar o Estado"

"Preocupadíssimo e com uma igreja dividida" é o estado de alma do Santo Padre, que se refere aos casos de abuso sexual como "monstruosidade". Está tudo no livro Francisco, O Caminho, de Maria João Avillez, que é lançado esta terça-feira. À conversa com o DN, a jornalista e cronista política aponta ao governo a "falta de reformas", o "descrédito" e "desmazelo" nos gastos e diz que o país precisa da direita e de "um ciclo político diferente".

Meio dia em ponto, eu e o fotógrafo entramos na casa de Maria João Avillez, em Lisboa. Com a arte de bem receber, acolhe-nos na sua sala de estar repleta de livros e fotografias nas estantes. São memórias da família, mas também de grandes entrevistas que fez na sua carreira de jornalista, a última das quais ao Papa Francisco e que esta terça-feira é transposta para livro.

O livro aborda vários desafios que a Igreja enfrenta, onde se destacam os casos de abuso sexual. Na sua opinião, que imagem da Igreja emana desta obra?
A primeira coisa é dar graças a Deus de haver um Papa assim, que consegue aliar na sua pessoa uma proximidade, afetividade e um imediato acolhimento de quem chega, de quem vem e de quem ele acaba de conhecer. Tem uma enorme solidez teológica, uma enorme lucidez de como deve conduzir a Igreja, e uma enorme segurança na condução de uma Igreja que, neste momento, atravessa uma crise e não só por causa dos abusos.

Atravessa uma crise porque os setores mais progressistas queriam mais velocidade em reformas e obtenção daquilo que acham a Igreja mais perfeita e há um setor mais conservador que faz mais marcha atrás, que tem uma passada mais lenta.

E que, eventualmente, quereria abafar os casos que foram públicos?
Isso não diria. Não sabemos tudo, sabemos o que os media nos trouxeram e o Santo Padre foi taxativo e veemente dizendo que é uma monstruosidade. Não é preciso dizer mais, porque o adjetivo que ele escolheu diz tudo.

Acho é que, provavelmente, pode ter havido pessoas mais preocupadas com o caso há mais tempo, sem nós sabermos. Só sabemos o que veio na comunicação social.

Também é preciso ver que conhecemos estes casos da Europa e do mundo, mas as coisas aqui, por uma razão que me ultrapassa, chegam mais tarde. Afinal, já eram casos que tinham alguns anos. Felizmente, estão a ser tratados e o Papa Francisco foi definitivo: é uma monstruosidade. Não é preciso dizer mais nada.

Quando a Maria João lhe falou da situação delicada que a Igreja tem em mãos também em Portugal, o Papa sentiu-se incomodado?
Durante toda a entrevista falou comigo ou como se já conhecesse as perguntas, ou como se já me conhecesse a mim. Evidentemente, mandei as perguntas para a Santa Sé, porque é o que se faz, e as perguntas vieram tal e qual eu as tinha mandado, mas em espanhol para ajudar a preparar-me. Pensando no povo português e pensando que era muito melhor que, pelo menos, um de nós falasse em português, assim fiz. Perguntei-lhe antes de começar a entrevista - e a CNN e a TVI passaram isso -, se podia falar muito devagarinho em português e ele concordou.

Percebeu todas as perguntas que fiz e não reagiu a nenhuma com surpresa ou renitência em responder. Todas as perguntas foram aceites do mesmo modo, algumas até com risos ou humor, outras com veemência como aconteceu com a questão do caso dos abusos. Mas relativamente à sua pergunta, não houve qualquer manifestação do Papa Francisco.

No livro, refere que o Papa entrou sozinho na sala onde decorreu a entrevista. Isso supreendeu-a?
Sim. Exatamente, e foi algo que nos impressionou a todos.

Estará ele mais sozinho devido à cisão entre progressistas e conservadores?
Não, não. Ele não está sozinho, de todo, ele fez questão de entrar sozinho. Acho que ele quis honrar-nos e dizer, "sou capaz de entrar aqui sozinho, sem séquito", nem sequer com a cadeira de rodas entrou. Ele foi tão generoso para comigo e com a equipa que entrou com a sua bengala, claro, mas pelo seu próprio pé.

No final, concedeu-nos 20 minutos de conversa fluida, muito engraçada e leve, ofereceu-nos uns terços e uns livros, e depois apareceu alguém que colocou discretamente a cadeira de rodas e ele despediu-se.

Muitos fiéis estão preocupados com a saúde do Papa. Como o viu?
A maior surpresa que tive, depois da dimensão da personalidade dele que me impressionou imenso, foi a simplicidade, o humor e a alegria. Fiquei a pensar em como é que há tanta gente a falar na saúde do Papa e ele nunca hesitou na procura de uma única palavra.

Quando lhe perguntei como se chamava um poeta, ele disse-me logo, bateu bola como se tivesse 40 anos! E, sobretudo, há uma coisa que não engana: a argúcia no olhar e o brilhozinho. Ele está, de facto, interessado na conversa e com um olhar muito atento. É tudo, menos uma pessoa doente.

Alguns fiéis temem que a vida do Papa possa estar em risco, devido ao seu pulso firme relativamente aos casos de abuso.
Em momento algum senti isso, aliás, senti o oposto. Senti que ele é senhor e dono da situação, o que não é o mesmo que ignorar que há correntes no Vaticano e que há histórias menos abonatórias.

Ainda agora o Santo Padre se zangou com a Cáritas internacional, portanto é uma pessoa que é capaz da sanção como mostrou com a história dos abusos.

É um Papa sem medo?
Sem medo nenhum, sem medo nenhum. Ele é o condutor.

Depois de o ter entrevistado, que marca de água julga que ficará do seu Papado? A coragem, a marca dos abusos sexuais, a forma como está junto do povo?
Consigo imaginar que ficará a marca de um dos Papas mais próximos que a Igreja conheceu. Aliás, ele logo que chega tem uma frase feliz que foi dizer que era uma Igreja em saída, envolvendo-se ele próprio na frase, e sendo ele o protagonista dessa Igreja saída.

Ele sai, ele vai ter com as pessoas, ele fala com o primeiro que lhe aparece, não há ritual, nem pompa, nem distância. Vai ficar essa imagem de um Papa risonho, chegado aos outros, que gostava que a Igreja fosse um hospital de campanha, e que quer uma Igreja em saída. Mas também vai ficar a imagem de alguém que não transigiu quando não devia transigir e que sabe conduzir a Igreja.

A 1 de setembro, o DN publicou a antecipação dos temas da entrevista com o Papa, e, nessa conversa, a Maria João garantiu que nada lhe indicou que o Santo Padre estivesse de saída. Mantém?
Não, nada. Então o Papa ia renunciar por causa dos abusos sexuais? Ele fez o que lhe competia, que era sancioná-los e dizer que temos de acabar com isto sem deixar margem para dúvida.

Não podia renunciar numa posição de fraqueza, acho que não. Até pode renunciar amanhã e eu aí telefono à Rosália e faço uma declaração a pedir desculpa aos leitores, mas nada na minha intuição e capacidade de observação me diz que pode estar perto uma renúncia. Até porque a moléstia dele é física e concentrada na mobilidade, não afeta o cérebro, nem a capacidade de decisão ou de trabalho.

Aliás, ele disse-me que não gostava nada de ir de férias para aquela residência para onde vão de férias os chefes da Igreja, que trabalhava muito bem onde estava e que se levantava às quatro da manhã. Não houve nenhum indício de fadiga ou cansaço, de forma nenhuma.

Além disso, há um problema, já há um Papa emérito vivo. Era pouco natural que passasse a haver dois, isso muito me espantaria, mas é com a Igreja.
Comigo, ele nunca exprimiu o mais pequeno sinal de cansaço ou de exaustão de estar ali. O que não exclui que seja um homem preocupadíssimo, porque ele sabe que tem uma Igreja dividida. Os bispos da Alemanha querem avançar numa direção que outros bispos não querem, ele sabe que tem problemas gravíssimos, sabe que os abusos estão na ordem do dia no mundo e que ninguém ignora isso. Portanto, não falei com um despreocupado, mas falei com uma pessoa que me pareceu de plena saúde física - à exceção da mobilidade do joelho -, e mentalmente muito bem e muito ágil.

E nessas preocupações, deu conta de algumas para 2023?
Não, a Santa Sé foi muito clara ao dizer-me que o Santo Padre tinha aceitado o meu pedido e que concedia a entrevista no âmbito da Jornada Mundial da Juventude de 2023, que são em Portugal. A jornada é muito interessante. O Papa tem um talento inato que é uma mistura de intuição e de gosto para falar com os jovens. Não há um jovem que seja indiferente ao Papa, e falo de crentes e não crentes, daquilo que tenho visto em reportagens e daquilo a que já assisti na Praça de São Pedro. E na entrevista disse-me que há poucos dias tinha recebido um grupo de jovens, demonstra que tem um contacto permanente e que ele se empenha muito nas jornadas.

Li no livro que o Papa elogia os jovens. Não parece desesperançado com a próxima geração, certo?
Não está nada desesperançado e pediu-lhes que abrissem uma janela, uma frase que me tenho fartado de citar porque acho maravilhosa. Aliás, a dada altura, fiz-lhe uma pergunta que revelava algum pessimismo e ele reagiu muito bem e disse que há muitas coisas boas no mundo.Ele próprio é um homem de esperança e na juventude deposita toda a esperança do mundo.

E nas Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, que esperança depositará?
É abrir a tal janela, mas sobretudo responsabilizar os jovens pelo formidável papel que têm em acelerar um futuro melhor em todos os aspetos. É como se fossem as fundações de um edifício futuro, a juventude é a fundação do futuro e o Papa sabe isso. Por isso, quer esses fundamentos bem sólidos, acha que os jovens são os portadores da esperança, de um melhor caminho, desde a prática do bem até às alterações climáticas e a uma melhor Igreja.

A propósito da Jornada Mundial da Juventude, o Santo Padre diz que virá um Papa, sem dizer se será ele. Poderá não vir a Lisboa?
Exatamente, porque não se sabe o dia de amanhã.

Mas os jovens poderão ficar com as expectativas defraudadas se ele não vier à jornada, certo?
Podem ficar, mas há o próprio embalo e entusiasmo das jornadas, porque vem gente de todo o mundo. Pode pensar-se que é uma manifestação de 50 mil pessoas numa praça de Lisboa, mas não, são centenas de milhares de jovens de todo o mundo. Claro que pelo grande amor e admiração que há por este Papa, poderá haver um primeiro momento de desilusão, mas depois o próprio embalo das jornadas dissipará essa desilusão. Mas espero muito que seja ele que venha.

O Papa diz que a Igreja "é uma mulher" e a Maria João refere que é notável a admiração que o Papa Francisco tem pela natureza feminina. O Papa falou-lhe da Virgem Maria e de Nossa Senhora de Fátima?
Falou e fiquei muito surpreendida. Todos sabemos que o Papa João Paulo II tinha uma ligação muito especial a Fátima por diversas razões e que atribuiu à Virgem de Fátima não ter morrido naquela tentativa de assassínio.

Mas este Papa, quando de repente lhe disse qualquer coisa sobre Portugal, fez a alusão a Fátima e descreve um momento da vida dele que me emocionou muito. Ele disse que chegou ali, se ajoelhou e ficou diante da imagem da virgem em silêncio, tendo-se tornado para ele "a virgem do silêncio". Depois disto disse-me, "para mim, Portugal é Fátima". Ele quis dar um grande enfoque à emoção que sentiu em Fátima que, aliás, foi visível até na televisão.

E na ligação à figura da mulher, houve alguma expressão que se tivesse destacado?
Fui levada a dizer, "Santo Padre, essa é a segunda homenagem que faz", porque acho que decididamente ele queria ter falado na mulher, ele quis dizer aquilo tudo. Inclusive, ele disse várias vezes a frase "a Igreja é feminina". Eu queria fazer precisamente essa pergunta, mas foi ele que salientou isso.

Acha que a Igreja é a mãe, mas de muitas formas além da própria maternidade. É a mãe pela responsabilidade, é a mãe pelo saber entender, é a mãe por ser capaz de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Uma homenagem à mulher e mãe, ao que ela representa e que é insubstituível, daquilo de que ela é capaz e do seu lugar imprescindível na Igreja e não só.

E já tem muitas mulheres a trabalhar com ele?
Afirmou que tem já muitas mulheres a trabalhar com ele na Santa Sé, até contou uma história maravilhosa a este propósito. Disse que um dia reparou que havia um documento especialmente bem preparado e que quis ver quem tinha feito e era de uma mulher. Ele disse que ficou muito contente e que, de facto, havia ali qualquer coisa que lhe dizia que aquilo não tinha sido feito por um homem. Dito assim, parece que ele secundariza os homens, mas não é isso; é antes conseguir identificar esse toque da intuição e perspicácia feminina, a capacidade feminina de olhar de outra forma.

E sobre a ordenação das mulheres pela Igreja não conversaram?
Não, porque ele foi tão eloquente a falar do que a mulher era, que acabou por não se falar.

Enquanto crente e próxima da Igreja, acredita que a ordenação das mulheres possa vir a ser realidade nos próximos anos?
Não sou capaz de dizer. Sempre achei que a Igreja era sábia, com todos os seus erros, com todas as suas muitas marés baixas, e com todas as suas marés altas que foram maravilhosas. No entanto, sempre acreditei que há uma sabedoria.

Repare na cadência das diversas personalidades dos que foram chamados a ser chefes da Igreja, é de uma enorme sabedoria. A seguir de um grande intelectual, grande sábio e um homem superiormente dotado intelectualmente, espiritualmente e teologicamente como Bento XVI, tinha de vir uma pessoa como o Papa Francisco. É muito interessante ver estas escolhas tão acertadas, às quais provavelmente não atribuímos a importância que têm. Portanto, não tenho competência para dizer se acho ou não, se sei ou não, se virá ou não. A Igreja dá os seus passos e não espero que seja para breve, mas também não excluo que um dia venha.

Considera que mesmo com as notícias de abusos sexuais, face à conjuntura que vivemos - pós pandemia e guerra na Europa -poderá haver uma certa aproximação das pessoas à Igreja?
Como trabalhei muito e ainda trabalho muito com a Igreja, vejo do que ela é capaz, e perante tudo o que a Igreja está a fazer neste momento - em que sobra mais mês do que dinheiro - interrogo-me se não seria 100 vezes pior sem a Igreja.

Tudo o que as instituições de solidariedade social marcadas pela Igreja estão a fazer, é maravilhoso. Fazem omeletes sem ovos, fazem o possível para não deixar as pessoas numa situação de fome e de indignidade. Nenhum ser humano merece ter fome e é algo que parece impossível numa capital de um país europeu. Portanto, tenho visto a Igreja ser capaz de coisas admiráveis, veja-se em África e na guerra. Por exemplo, o Papa disse que enviou logo no início da guerra três cardeais para o representar na Ucrânia. Isto é de uma enorme responsabilidade e valor e não posso ficar prisioneira a ver a Igreja só pelo lado dos abusos.

Além disso, tenho muito presente que o Santo Padre começou por veementemente sancionar, mas depois disse que tinha um estudo muito bem feito por pessoas em quem confiava e que 3% dos abusos eram na Igreja e 43% nas famílias. Tenho imensa pena que o empenho e responsabilidade que houve em noticiar os abusos, que não podiam ter deixado de ser denunciados - e isso estaria fora de questão, eu própria sou jornalista -, mas nunca vi nenhum artigo sobre abusos nas famílias.

Não olho para a Igreja com pessimismo por causa dos abusos e acho que a Igreja é a instituição que conhecemos que resiste há 2000 anos e continua sempre aqui. Isso para mim, mesmo nos momentos mais difíceis, é um grande alento.

O auxílio, nesta altura, pode significar uma reaproximação das pessoas à Igreja?
Sim, acho que sim. E a jornada pode pôr na montra a força da Igreja, e a força da juventude certamente, mas de uma juventude que quer estar ligada à Igreja e que não está ali porque lhe pediram.

Vamos à política. O país tem assistido a uma série de casos e casinhos no governo, desde a situação de Miguel Alves, ex-autarca de Caminha, até à remodelação governamental. Como avalia o estado da equipa que nos governa?

Perante o que vejo, não sei se António Costa gostaria, ou gosta, de ter uma maioria absoluta. Mas uma vez que a teve, como é que não abriu uma janela e foi buscar o melhor que poderia obter da sociedade civil e da política?

Uma maioria absoluta dá garantia de serem aprovadas as reformas, mas temos um governo pior, seguido de uma aparência de cansaço, uma aparência de desinteresse do primeiro-ministro, e uma soma de casos tão invulgar que já vamos no sexto ou no sétimo.

Há sempre um "afinal" e esse afinal é sempre muito lesivo da credibilidade de uma governação. Há ali um cansaço, como se o primeiro-ministro estivesse a acabar a governação e não a começar. E há sempre uma desconfiança do PRR não estar a ser aplicado com a velocidade, sabedoria e prioridades indispensáveis. Não digo que não esteja, mas há uma desconfiança natural e legítima sobre se eles estão a fazer o melhor que podem.

Terá sido por isso que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse à ministra Ana Abrunhosa "não lhe predou-o"?
Senti absolutamente um aviso e tenho pena que não tenha havido mais. Já houve matérias para outros avisos onde, aparentemente, terá havido menos empenho do Presidente da República para os fazer. Dito isto, não posso excluir que o presidente os faça privadamente ao primeiro-ministro e aos ministros. Certamente que admito que o fará, mas o país precisa de saber que o Presidente está preocupado além de dois ou três avisos que faz.

Conheceu bem o PS de Soares e escreveu sobre ele. No seu entender, que PS é este, liderado por Costa e com maioria absoluta? Estará mais perto de Cavaco do que de Soares?
Não, não, não é próximo de Cavaco em nada. O que definiu Cavaco foi o facto de ser reformador, teve os meios para isso, mas se não fosse reformador não teria sido capaz. Mas António Costa não tem instinto reformista, não é um reformador nato. Com uma maioria absoluta e com um PRR poderia reformar o Estado, reformar o desmazelo de se gastar mais em sítios onde é menos preciso, de o dinheiro não chegar porque não foi bem contabilizado ou aplicado.

Recebemos tantos fundos, tantos fundos, mas os impostos são cada vez mais altos e cada vez há menos dinheiro. Por exemplo, não acho que o setor privado seja atendido - e nunca achei com António Costa -, que é o único que produz riqueza, e só com produção de riqueza é que se aumentam estes ordenados vergonhosos. São ordenados que impedem os jovens dotados, inteligentes e capazes de trabalhar cá e irem em busca de trabalho no estrangeiro. Tenho muita pena que o setor privado não seja uma preocupação para o primeiro-ministro atender.

Mesmo sem geringonça, haverá preconceito ideológico em relação ao setor privado?
Exatamente, mas quando havia a geringonça era uma coisa, embora ache que quem sempre mandou foi o primeiro-ministro e não a geringonça. Mas agora nem isso há, portanto, devia haver um entendimento de que sem produção de riqueza e sem atenção ao setor privado, o país não se desenvolve. Ao setor privado, se não lhe for dada atenção, não pode produzir riqueza e é disto que não saímos.

Certos comentadores políticos duvidam que o governo chegue ao fim da legislatura. É também o seu entendimento?
Custa-me a crer como é que este Governo não durará. Estou a ver que o Presidente da República já não gostou muito da dissolução que fez e que não lhe saiu bem do seu ponto de vista. Agora, fazer uma segunda? Não sei com que pretexto. E não sei se o senhor primeiro-ministro, se estiver cansado como aparenta, se tem para onde ir.

Refere-se a Bruxelas?
Sim, fala-se, mas também admito que se ele estiver cansado e quiser sair tenha outras ocupações para as quais o possam solicitar fora do quadro estrito da Comissão Europeia ou do Parlamento Europeu.

Ser candidato à presidência? Vê nele características para ser Presidente da República?
Vejo nele características para ser politicamente o que quiser porque é um político muito inteligente. Portanto, se os votos o acompanharem, poderá vir a ser aquilo que quiser. O que gostava de recordar é que se o primeiro-ministro não se sentir em condições - coisa que não me parece que venha a acontecer - o Presidente da República terá dito uma vez que não cede a um primeiro-ministro substituto sem eleições. Portanto, aí teria de se ver como seria. Mas não vejo como é que este Governo pode acabar mais cedo, especialmente tendo maioria absoluta.

No domingo assinalou-se o 42.º aniversário da morte de Sá Carneiro. No seu entender, a direita precisa de recuperar esse espírito? É isso que estará a faltar?
Está. E Luís Montenegro, para acabar com aquela amarra que lhe colocam nos pés de lhe fazerem 10 perguntas em que nove são sobre o Chega, deveria dizer: "o PSD vai ser capaz de conquistar uma maioria absoluta e mudar a governação, as prioridades, etc."

A Direita ainda precisa de tempo, a começar pelo líder do PSD. E há outro líder que também precisa de tempo, que é de Centro-Direita e que teve uma bela vitória em Lisboa, Carlos Moedas. Ambos precisam de tempo, especialmente quando um não tem palco (Montenegro), e quando o outro chegou há pouco tempo (Moedas). Há uma grande dificuldade em governar uma cidade como Lisboa, mas também há dificuldades no PSD, que ainda está a voltar ao de cima depois de uma liderança que não foi adequada como a de Rui Rio.

Tem de passar mais tempo, mas que a Direita e o Centro-Direita precisam de fôlego, ideias, acreditar nela própria, isso precisam de certeza. Os portugueses precisam de saber que têm ali um porto de abrigo e isso não está nítido, mas que a direita precisa de se mostrar como o próximo porto de abrigo, isso precisa.

Julga que os portugueses receiam que uma próxima alternativa de Direita possa incluir o Chega? Isso pode criar desconfiança nos eleitores?
Com certeza que o Chega foi um fenómeno que chegou mais tarde, já temos a Extrema-Direita em vários países e, atualmente, cada vez em mais. Por natureza, talvez porque não gosto deles, acho que eles fazem muito aparato. André Ventura enche o Parlamento, mas para mim, o Chega por enquanto ainda é o André Ventura.

Pode dizer-me que daqui a quatro anos podem ter não sei quantos votos, mas de momento é uma gente que ainda não provou nada e vive de um líder dotado, inteligente e com capacidade de ocupar o Parlamento com uma segurança desmedida. Para mim o Chega é só isso.

Já o PSD tem de começar a dizer que vai ter uma maioria absoluta e que vai ser capaz de a conquistar, porque o país precisa de um ciclo político diferente. Se o PSD não disser, não tem. Mas tem de começar a cativar e a seduzir os seus eleitores e aqueles que teve e perdeu, garantindo que é capaz de voltar a ser o mesmo do tempo de Sá Carneiro.

O que é que estará a faltar?
Luís Montenegro não tem feito erros, a questão é que não é fácil não estar no Parlamento. Isto não é uma desculpa, é mesmo assim, porque caso contrário seria ele a estar todos os dias a argumentar com o Governo. Seria ele que lideraria um grande grupo parlamentar, mas acho que criou uma grande empatia porque é uma pessoa empática, segura, tem uma grande experiência política, e deixou uma imagem muito boa de ter sido um grande líder parlamentar de dois partidos.

As pessoas esqueceram-se que ele liderou o PSD com as suas características próprias e o CDS que, muitas vezes, divergia do PSD. Lembro-me de achar admirável que ele tivesse conseguido isso. Tem de não deixar morrer essa ideia e tem de ser mais atuante e mais enérgico.

Então o que falta a Montenegro?
Falta-lhe a outra metade, que é mais energia e mais convencimento ao país de que o PSD pode voltar a ser o que foi. E quando falar ao país e lhe perguntarem pela Iniciativa Liberal ou pelo Chega, tem de dizer que está a falar do PSD e só do PSD.

O PSD reformou com Cavaco e com Sá Carneiro e este último inverteu um ciclo político, em 1979, numa altura em que os militares tinham enorme poder, havia um Conselho da Revolução, os partidos não eram totalmente livres, e ele foi buscar pessoas do centro-esquerda - reformadores -, foi buscar o CDS e o PPM sem nenhuma hesitação. Foi capaz de fazer uma frente numa altura em que achávamos impossível e em que a palavra "direita" não se podia dizer. Era uma altura em que os partidos eram troçados, vilipendiados, etc., e eu vi-o fazer isso.

Isso é possível fazer. Claro que os tempos são outros, são mais difíceis, mas a outra metade é Luís Montenegro ser capaz de mostrar que o PSD vai ser capaz de ter uma maioria absoluta, de começar outro ciclo político que o país precisa e pede, e de ser capaz de arregimentar quem for preciso.

Por fim, os media. Está preocupada com o estado do setor?
Os media são de tal forma insubstituíveis, basta pensar na guerra da Ucrânia que seguimos como se estivéssemos lá, com a sorte que temos em não estar.

Acho que, pelo 25 de Abril ter vindo após 48 anos de não imprensa livre, de uma censura oficial, a imprensa inclinou-se naturalmente para a esquerda. Ainda hoje há resquícios disso. Acho que nos media se trata com outro empenho, outra amabilidade e outros ouvidos, o setor do PS para a esquerda, mais do que o setor do PS para a direita. Ainda há uma noção de dois pesos e duas medidas, sinto isso. Por exemplo, a quantidade de familiares juntos no Governo atualmente, a quantidade de casos que existem, se fosse com a Direita era muito diferente. Aliás, na governação de Passos Coelho houve um cerco dos media, da Esquerda, da Extrema-Esquerda e do PS.

Quase 50 anos após o 25 de Abril ainda sente isso?
Há um empenho natural. Por exemplo: António Guterres, como presidente das Nações Unidas, é muito mimado na imprensa; o Durão Barroso, tem sempre um adjetivo negativo ou antipático e esteve 10 anos na presidência da Comissão Europeia. De facto, o tratamento parece-me sempre ser imediatamente diferente.

E considera que isso vai mudar com as novas gerações?
Não sei, mas gostaria. Gostaria que se olhasse para uma pessoa de Centro-Esquerda ou de Centro-Direita da mesma forma, assim como para outros. Parece que há um anátema ou que a Direita não tem direito de cidade.