Política
03 dezembro 2022 às 00h15

Lei de Política Criminal caducada há três meses. Governo ainda sem propostas

Caducada desde Setembro, a Lei de Política Criminal está em processo de revisão. Dita as orientações e prioridades de prevenção e investigação criminal. Parlamento espera a proposta - que devia ter sido apresentada em Abril - do Governo, que ainda não revelou as suas ideias. Violência doméstica, tráfico de seres humanos, tráfico de droga e crimes de ódio estão na agenda dos partidos.

A Lei de Política Criminal (LPC), que define os crimes prioritários para a prevenção e investigação criminal está caducada desde setembro e a proposta do Governo - que tinha obrigação de a apresentar à Assembleia da República até abril passado - não é ainda conhecida pelos deputados. A LPC estava programada para o biénio de 2020-2022.

Confrontado pelo DN desde a passada segunda-feira, o ministério da Justiça (MJ), que coordena este processo legislativo, não respondeu.

O PS defende que "não há um vazio", argumentando que "continuam a valer as prioridades da lei anterior" e aguarda a proposta do executivo.

PSD e Iniciativa Liberal (IL) lamentam esta falha e adiantam as suas ideias, tal como o PCP, BE, PAN e o Livre (ver mais abaixo no texto).

O Chega não quis revelar o que pensa.

Da parte das polícias, PJ e PSP também não responderam ao DN.

O Ministério da Administração Interna declinou fazer comentários, remetendo para o ministério da Justiça.

A GNR remeteu para o Sistema de Segurança Interna (SSI), cujo porta-voz adiantou que "está a trabalhar em articulação com o MJ, dando o seu contributo em função do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI).

Acrescenta que, do seu ponto de vista, "em termos gerais, as prioridades mantêm-se, podendo haver porventura pequenos ajustes" que estão a analisar em conjunto".

Cibercriminalidade pode ter uma avaliação especial, tal como a maior utilização de armas brancas e de fogo, soube o DN de fonte policial que está a acompanhar.

A Procuradoria-Geral da República (PGR), que tem a responsabilidade de monitorizar a execução da LPC, também não respondeu ao DN.

Mas da parte do Ministério Público (MP), o Sindicato dos Magistrados do MP (SMMP), considera que as prioridades para o próximo biénio "irão na linha dos objetivos de política criminal em vigor".

No entanto, frisa o presidente, Adão Carvalho, "é essencial reforçar os meios humanos e materiais que tornem exequíveis as intenções da lei, sob pena de as mesmas não passarem do papel".

Mónica Quintela, a coordenadora para a Justiça do grupo parlamentar do PSD, lembra que "em cumprimento da Lei-Quadro da Política Criminal, a LPC para o biénio 2022/2024 deveria ter sido apresentada pelo Governo até 15 de abril de 2022, aprovada na Assembleia da República até 15 de junho de 2022 e entrado em vigor a 1 de setembro de 2022".

Sucede que, sublinha, "até ao momento, o Governo não a apresentou" e "assim, não se encontra em vigor em Portugal nenhuma lei que defina os objetivos, prioridades e orientações de política criminal".

Para o presidente do SMMP "se atentarmos no discurso da atual Procuradora-Geral da República na sessão solene de abertura do ano judicial, os objetivos estratégicos a fixar para o triénio 2022-2024 irão na linha dos objetivos de política criminal em vigor para o biénio 2020-2022".

Esta estabeleceu "como fenómenos criminais prioritários, designadamente, a corrupção e os crimes conexos, em particular tendo presente o risco associado ao aumento dos fundos públicos disponibilizados para o combate à crise económica bem como os riscos de abuso de regimes específicos de flexibilização nos procedimentos de contratação pública ou de fiscalização financeira; a violência de género; os crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças, os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes; e o cibercrime".

Adão Carvalho assinala que "no essencial, o SMMP concorda om os objetivos, prioridades e orientações de política criminal que vêm sido seguidos pelas sucessivas leis de política criminal e que vão de encontro aos dados sobre as tendências do crime prevalecentes".

Citaçãocitacao "Não basta definir um conjunto de crimes de prevenção e investigação prioritários para que efetivamente o sejam. É essencial reforçar os meios humanos e materiais que tornem exequível as intenções da lei, sob pena de as mesmas não passarem do papel"

Porém, adverte este magistrado, "não basta definir um conjunto de crimes de prevenção e investigação prioritários para que efetivamente o sejam. É essencial reforçar os meios humanos e materiais que tornem exequível as intenções da lei, sob pena de as mesmas não passarem do papel".

Dá como exemplo a recente notícia sobre "a Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica (SEIVD) do Porto, departamento do MP especializado nos crimes de violência doméstica e de género, onde estavam pendentes mais de cinco mil processos e apenas estavam ao serviço 5 funcionários: fácil é de concluir que é de todo impossível dar prioridade à totalidade dos inquéritos, porque todos são de investigação prioritária.

Segundo Adão Carvalho "o exemplo da SEIVD do Porto replica-se nas demais unidades especializadas de violência doméstica do país. Sem meios, não há lei de política criminal. Ao Governo compete assegurar os meios que o Ministério Público necessita para dar execução às prioridades de investigação que vierem a ser definidas pela lei de política criminal"

O deputado socialista Pedro Delgado Alves diz que o partido "vai esperar pela proposta do Governo", mas, do seu ponto de vista, "tendo em conta as informações de que dispõe", não haverá "alterações drásticas".

Podem, "eventualmente, ser feitas algumas afinações muito pontuais". Dá como exemplo "o caso dos crimes que têm a ver com a proteção da vida privada na internet, cuja lei teve alterações".

Desvaloriza a "caducidade" do diploma: "Até ser aprovada a nova LPC valem as prioridades da anterior. Não há vazio". Adianta que "em princípio, no início de 2023 será tramitada", com uma apresentação de proposta.

Mónica Quintela, coordenadora da bancada social-democrata PSD para a Justiça fez uma extensa e profunda análise da LPC, sublinhando que "o Governo está em falta nesta matéria desde 15 de abril passado", quando deveria ter apresentado a nova proposta.

Comparando com o diploma anterior, recorda que, no que respeita aos crimes de prevenção prioritária a LPC 2020-2022 "incluiu ex novo o homicídio conjugal; a criminalidade em ambiente de saúde; o furto e o roubo em residências; o furto em edifício comercial ou industrial; o tráfico de espécies protegidas; a burla com fraude bancária e o abuso de cartão de garantia ou de crédito; a violação de regras de segurança; os crimes contra a vida e contra a integridade física praticados contra ou por agentes de autoridade; os crimes em contexto rodoviário de que resulte a morte, a condução perigosa de veículo rodoviário e a condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas; a condução sem habilitação legal; e a propagação de doença".

Quantos aos "crimes de investigação prioritária, incluiu ex novo os crimes contra a vida e contra a integridade física praticados por agentes de autoridade (a LPC 2017/2019 apenas previa os crimes contra a vida e contra a integridade física praticados contra agentes de autoridade); o homicídio conjugal; os crimes praticados contra crianças e jovens, idosos, pessoas com deficiência e outras pessoas vulneráveis; os crimes violentos, bem como os praticados de forma organizada ou em grupo; o crime de incêndio florestal, os crimes contra o ambiente e o tráfico de espécies protegidas; os crimes em contexto rodoviário de que resulte a morte, a condução perigosa de veículo rodoviário e a condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas; os crimes contra a autoridade pública cometidos em contexto de emergência sanitária ou de proteção civil; e a propagação de doença".

A deputada analisa as tendências criminais do último RASI (2021) e, além de pedir especial atenção para alguns crimes que registaram subidas (como a violência doméstica, criminalidade grupal e juvenil, crimes sexuais, criminalidade económico-financeira e informática), olha com preocupação para o "crescendo" na "exploração laboral de imigrantes ilegais", considerando que se "impõe que a LPC dê a devida atenção a esta realidade que tem sido uma chicotada nos direitos humanos, colocando também os imigrantes ao lado de outras pessoas vulneráveis expressamente previstas como as crianças e jovens, idosos ou pessoas com deficiência".

Defende assim que "a próxima LPC contemple, quer do ponto de vista da prevenção, quer da investigação prioritárias, o tráfico de seres humanos - veja-se o que está a acontecer com o êxodo em massa de timorenses para Portugal.

Entende também que o "tráfico de estupefacientes deverá ser de investigação prioritária, sendo muito preocupante o grande aumento de tráfico de cocaína na Europa e que está a passar por Portugal, não sendo despicienda toda a criminalidade conexa que lhe está associada".

Saleinta que "no que se reporta ao tráfico de droga, o RASI assinala que o tráfico de estupefacientes continua a ser a área tradicional de atuação do crime organizado e que Portugal tem constituído uma plataforma de trânsito de elevadas quantidades de haxixe provenientes de Marrocos e de cocaína proveniente da Colômbia, Perú e Bolívia. O tráfico de cocaína, quer por via marítima quer por via aérea, e o tráfico de haxixe por via marítima e mais concentrado na costa algarvia e vicentina, constituem as principais ameaças com que Portugal se depara".

O PSD quer ainda trazer para o leque de crimes de investigação prioritária "os crimes motivados por discriminação racial, religiosa e sexual, denominados crimes de ódio, não obstante não terem expressão significativa no RASI 2021".

A Iniciativa Liberal (IL) "não compreende o atraso do Governo na apresentação da Lei sobre Política Criminal para o próximo biénio".

"À semelhança de tantos outros diplomas nas diversas áreas da governação, o PS anda sempre a correr atrás do prejuízo. Não se prepara, não prevê e não tem respostas para dar ao país", sublinnha Patrícia Gilvaz, a deputada liberal com a pasta da Justiça.

A IL "está expectante para saber quais serão as prioridades que o executivo vai inscrever na lei, não sendo possível imaginar que esta ignore o contexto geopolítico internacional, com novas ameaças, que podem ter impacto também na segurança interna".

Para os liberais "a discussão em torno das questões da segurança não pode ser confundida com a mediatização de alguns fenómenos" e, na sua ótica, "existe ainda um longo trabalho de reflexão e investigação sobre os modelos de política de segurança que devem ser implementados para dar resposta a determinados temas". Para a IL "devem ser algumas das prioridades do Governo e dos partidos com assento na Assembleia da República".

Patrícia Gilvaz coloca "em primeiro lugar, o combate à violência doméstica". Sublinha que "apesar dos progressos que têm vindo a ser feitos nos últimos anos, ainda há muito a fazer enquanto este for um flagelo nacional que atinge não apenas as mulheres, mas também homens, crianças e idosos, como, aliás, reconheceu a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes.

No seu entender, "este é um claro exemplo da degradação das funções sociais do Estado, que se traduz na falha dos recursos afetos à prevenção, à proteção e ao apoio às vítimas, apesar de estes estarem previstos na lei".

Defende a IL que "para assegurar o apoio, a segurança e a confiança de que as vítimas de violência doméstica precisam é urgente existir uma coordenação eficiente de todos os atores envolvidos no processo: órgãos de polícia criminal, instituições de Saúde, Segurança Social e Justiça".

Não hesita esta deputada em dizer que "é, sem dúvida, um dos crimes que merece um tratamento diferenciado na próxima Lei de Política Criminal".

Por outro lado, acrescenta que não se pode "ignorar que a criminalidade juvenil organizada está a aumentar de uma forma preocupante e o combate à deve ser priorizado".

Paralelamente, completa, "temos a criminalidade grupal que o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2021 mencionou ser crescente e preocupante e a pequena criminalidade, em relação à qual é expectável um aumento do número de casos, reflexo da conjuntura socioeconómica e da perda do poder de compra, principalmente dos mais desfavorecidos".

A IL desafia O Governo a "encarar estes temas como sendo parte da política social, mas não os pode deixar de integrar na política criminal, numa ótica de prevenção e ressocialização, que são os fins últimos do direito penal. Enquanto isso não acontecer, qualquer que seja o seu plano, irá falhar, por ser inadequado e insuficiente".

Alma Rivera, coordenadora do grupo parlamentar comunista para a Justiça, lembra a posição do seu partido quanto à LPC "não se coadunar com o basilar princípio de respeito pela autonomia do Ministério Público (MP) e das suas competências em matéria de ação penal, no quadro da separação e independência do poder judicial".

Sublinha a deputada que "deve ser sempre o MP a definir a suas prioridades, a alocar os recursos e a dirigir a investigação e não é à Assembleia da República que cabe esse papel".

Com esta ressalva, Alma Rivera destaca que "o poder político tem um papel primordial que é o de garantir os meios ao serviço dos Órgãos de Polícia Criminal (OPC) e da justiça adequados ao combate à criminalidade, cada vez mais sofisticada e com novos recursos".

Salienta, como exemplo, "a realidade do tráfico de droga e das substâncias em circulação, o tráfico de seres humanos, a criminalidade económica e financeira ou os crimes motivados pelas diversas discriminações, nomeadamente o ódio racial".

Tal como o PCP, o BE também tem reservas "em relação à existência desta lei, revista periodicamente, não só por temer interferência na autonomia do MP mas por "fatiar" o princípio da legalidade a que a investigação judiciária está sujeita, criando listagens onde naturalmente quase tudo é prioridade".

Pedro Filipe Soares, responsável parlamentar bloquista pela pasta da Justiça, olha com particular atenção para o leque de crimes que se enquadram nos "crimes de ódio" e nota que a "inexistência" desta categoria em concreto "dificulta a sua investigação prioritária, apesar da previsão da prevenção criminal".

O BE, lembra Pedro Filipe Soares, "propõe esse tipo de crime desde 2017". Sublinha que "esses crimes de ódio (relativos a origem racial, nacional, identidade de género ou orientação sexual) devem estar relacionados não apenas com injúrias mas com discriminações objetivas na vida da comunidade, situações de mais eficaz produção de prova".

O deputado argumenta que "o combate à discriminação racial tem seguido a via contraordenacional por lei aprovada em 2017, com a abstenção do BE" e que "a ineficácia dessa via tem sido patente e subalterniza a mensagem da gravidade das discriminações de ódio racial e outras".

O PAN recupera a sua reivindicação, rejeitada na anterior LPC, de atribuir investigação prioritária aos "crimes contra a natureza, nomeadamente de tráfico de espécies selvagens ou exóticas" e os " crimes contra animais de companhia", cuja importância ficou, no seu entender, comprovada pelas situações "como as ocorridas neste verão no incêndio de Palmela em que foram resgatadas espécies exóticas em fuga como cangurus ou os números crescentes, segundo diversos relatórios da UE, do comércio ilegal de animais de companhia".

Segundo o porta-voz do partido de Inês Sousa Real, "a inclusão destes crimes nos crimes de prevenção e investigação prioritária não é uma questão menor, seja pela sua ligação com outros fenómenos de criminalidade, como é o caso da violência doméstica, em que os animais são igualmente vítimas de maus tratos e utilizados como forma de violência contra as vítimas humanas, seja porque o nosso ordenamento jurídico reconhece os animais como seres vivos dotados de sensibilidade, existindo uma tutela penal dos maus tratos a animais de companhia e de proteção das espécies selvagens".

Por isso, sublinha o PAN, "é necessária uma intervenção atempada para prevenir este tipo de criminalidade, cujo tempo de resposta não se coaduna com a delonga processual".

O PAN destaca ainda o tráfico de estupefacientes. Para este partido, tendo em conta que "como todos sabemos, Portugal é uma porta de entrada para o tráfico de droga", faz "todo o sentido que estes crimes sejam considerados de prevenção prioritária, como já são, mas seria relevante um debate amplo sobre a possibilidade de prever o alargamento destes crimes para crimes de investigação prioritária, analisando as implicações e utilidade que isso teria e relevando as próprias ligações que existem entre este tipo de crimes e a criminalidade violenta e organizada", uma vez que "estes últimos já são considerados como crimes de investigação prioritária".

A "mesma discussão", frisa esta fonte oficial, deve ser feita relativamente aos designados "crimes de ódio".

Primeiro, assinala, "é preciso fazer a distinção entre crimes de discurso de ódio e incitamento ao ódio e aos demais crimes motivados por algum tipo de discriminação, seja ela racial, de género, religiosa ou qualquer outra".

Isto porqur, explica o PAN, "dependendo da sua natureza, podem ou não estar já no leque previsto na lei de política criminal".

Por outro lado, o discurso de ódio deveria, no entender do PAN, "ser considerado como crimes de prevenção prioritária e, por isso, deve ser feito o debate alargado sobre a sua inclusão como crimes de investigação prioritária"

O Livre assinala que "o alargamento do número de crimes de prevenção e investigação prioritária" terá sempre se ser acompanhado pelo "alargamento de capacidade de resposta da justiça e órgãos de polícia criminal", sob pena de "poder comprometer a efetiva prioridade destes crimes".

Para o Livre, a "elevada taxa de reincidência nos crimes de prevenção prioritária (como a violência doméstica, crimes de ódio e crimes rodoviários) têm de ser acompanhados de estratégias de sensibilização", sem as quais "outras não é possível existir eficaz prevenção, repressão e redução da criminalidade - que são os objetivos específicos da política criminal.

O partido liderado por Rui Tavares defende ainda "uma verdadeira revisão penal", com alargamento de prazo de queixa, revisão de prazos de prescrição (por exemplo, o abuso sexual de menores, violação e outros talvez não devessem ter prazo de prescrição - o que já acontece noutros sistemas penais), revisão de meios de prova e reforço de programas de reabilitação e reintegração de agentes".

O Livre advoga ainda "uma aposta na formação especializada dentro das forças de segurança (chegando a agentes, inspetores e guardas de primeira linha), repensar o código penal e investir na investigação criminal.