Política
03 dezembro 2021 às 07h00

Ana Mendes Godinho: "Sustentabilidade da Segurança Social é o grande desafio e exige novas fontes de financiamento"

Ministra do Trabalho, Solidariedade e SS defende a valorização das remunerações em Portugal e realça importância da subida do salário mínimo nessa equação. Garante que o governo se mantém focado nos jovens e no reskilling e destaca a importância dos apoios extraordinários criados para responder à crise pandémica. E confirma que as alterações ao Código do Trabalho devem continuar.

Rosália Amorim e Pedro Cruz (TSF)

Há dois anos ministra do governo que está a chegar ao fim, Ana Mendes Godinho enfrentou no Ministério do Trabalho desafios inesperados por causa da pandemia. As novas formas de trabalho que não estavam regulamentadas, o teletrabalho, o que vai mudar no mundo laboral nesta década, a falta de mão-de-obra e os direitos sociais e laborais. Questões que terão de ser abordadas de forma diferente.

O tema da falta de mão-de-obra está a preocupar todos os setores. Empresas e confederações têm falado muito no tema. Qual é o retrato atual da situação?
A pandemia mostrou como é mesmo preciso acelerar estes investimentos estruturais naquilo que faz a diferença na nossa sociedade e na nossa resposta do modelo social que queremos desenvolver em Portugal. Pergunta-me expressamente sobre a falta de recursos humanos e gostava de fazer um enquadramento. Estamos num momento que ninguém imaginava que seria possível, num pós-pandemia com a taxa de desemprego mais baixa da década - não só da década, os números de desemprego, nomeadamente de outubro, apontam um mês com a taxa mais baixa desde 2001, o que mostra, por um lado, a grande capacidade coletiva que houve de dar resposta a esta pandemia, a esta crise, com resultados evidentes de uma crise anterior. Basta lembrar a taxa de desemprego durante a crise do início do século; se voltássemos a esses tempos teríamos em alguns meses mais de 18%. Hoje estamos com 6,4% e esta taxa de desemprego mostra a capacidade que houve de manter emprego em situações absolutamente extraordinárias, diria quase artificiais, quando foi pedida à economia que parasse e foram criados mecanismos completamente extraordinários para suster e manter o emprego. Mas também revela uma grande capacidade de retoma e de recuperação e de resposta ao desemprego, porque muitos ficaram desempregados logo no momento inicial da pandemia, março/abril de 2020, e a verdade é que houve grande capacidade de reabsorção das pessoas no mercado de trabalho.

Ainda assim, temos uma taxa de desemprego de 6,4%, mas não há mão-de-obra que chegue para as necessidades...
Era esse o retrato que queria fazer. No fundo, isto mostra também a necessidade que temos de encontrar forma de fazer uma ligação entre as necessidades do mercado de trabalho e as de recursos humanos, e esse é um esforço a que a pandemia também nos levou, conseguir encontrar cada vez mais formas de fazer uma ligação mais próxima, uma articulação de perto entre o mercado de trabalho e as necessidades e as qualificações que os trabalhadores têm.

Entre o mercado de trabalho e as empresas ou entre o mercado de trabalho e as universidades?
Entre tudo, é uma maior articulação entre todos: mercado de trabalho, universidades e serviços de emprego, nomeadamente o IEFP, para conseguir fazer cada vez mais esta ligação. Esse é um desafio enorme que temos. Já agora queria dar-lhe alguns números para perceber o que é que representa a situação das pessoas que estão desempregadas neste momento e o que falta neste match entre o mercado de trabalho e quem está desempregado. Em termos de colocações do IEFP, 60% dos pedidos apresentados pelas empresas têm um match por parte do número de pessoas que está desempregada. E 58% das ofertas de emprego que temos no IEFP correspondem a salário mínimo... Outro número que acho particularmente interessante é que de todas as ofertas de emprego que existem no mercado de trabalho, existe uma realidade de cerca de 12% em que há recusa do trabalhador por alguma razão. Ou por incompatibilidade com a função, ou alguma outra que a lei permite hoje em dia.

Mas nesse caso por excesso de qualificações, como acontecia antes, ou falta de qualificações?
Ambas, por desajuste. Não estou a dizer por parte da empresa, estou a dizer por parte do trabalhador.

Mas essa percentagem de pessoas que não consegue encontrar trabalho que é proposto pelo IEFP é por excesso de qualificações ou por falta de qualificações?
Esta recusa de trabalho significa que há alguma incompatibilidade do próprio trabalhador, que considera que aquela oferta tem um desfasamento face às suas qualificações ou à sua situação laboral. O que acaba por acontecer é que grande parte das ofertas acabam por não ter também por parte das empresas aceitação. Acho que a pandemia nos deu a todos esta necessidade de acelerar e encontrar melhores respostas do ponto de vista de valorização dos trabalhadores e dos jovens no mercado de trabalho. Para mim isso é evidente, ganhámos todos uma legitimidade social acrescida para aquilo que parece hoje consensual. É difícil encontrar alguém que não me diga que não é essencial aumentar o salário mínimo ou que não é essencial valorizar os trabalhadores e subir salários, o que antes da pandemia era difícil ter consenso alargado. Diria mesmo que este é um momento único do ponto de vista de mobilização e de legitimidade social para valorizarmos e conseguirmos ter medidas estruturais que ponham os trabalhadores no centro das relações laborais.

Essa falta de mão-de-obra que temos em Portugal terá que ver com os salários baixos ou muito baixos que ainda se praticam?
Era o que estava a dizer, acho que nunca como agora houve um consenso tão alargado, ou pelo menos uníssono nas vozes, de que é mesmo preciso aumentar não só o salário mínimo nacional como também valorizar, em geral, os salários.

Mas isso não se faz por decreto. Quer dizer, o salário mínimo pode fazer-se, mas o resto não.
O salário mínimo faz-se. Aliás, é isso que tem sido feito. Voltámos a fazê-lo agora. O aumento do salário mínimo para 2022 é o maior aumento absoluto de sempre. Mas só queria lembrar isto: se voltarmos a 2015, quando apresentámos este objetivo, a contestação que houve e a previsão de que isto ia gerar efeitos desastrosos do ponto de vista de distribuição de emprego... acho que hoje é evidente para todos que Portugal deu mostras de que através desta valorização e deste aumento sem precedentes do salário mínimo teve uma grande capacidade de crescimento da economia e de evolução dos salários. Respondendo ao que me pergunta, a evolução dos salários é um dos desafios enormes que temos. Se nos compararmos com a média europeia, estamos claramente abaixo no peso das retribuições dos salários no PIB - e essa tem de ser uma missão coletiva comum. Se acreditamos todos que é fundamental termos trabalhadores motivados, criativos, inovadores, empenhados neste crescimento e desenvolvimento, seja desenvolvimento empresarial seja desenvolvimento e crescimento do país, é fundamental conseguirmos aumentar o peso dos salários no PIB nacional.

Aumentar o peso dos salários quer dizer reduzir o peso dos impostos?
Não. Isso quer dizer conseguir que a massa salarial tenha um peso num PIB nacional superior ao que hoje tem.

Então não há impostos a mais?
Podemos depois discutir a questão do custo dos impostos sobre os salários. O que estou a dizer é o peso que as remunerações ocupam na distribuição da riqueza nacional. O que estamos a dizer é como é que nós queremos partilhar a riqueza em Portugal. Queremos que essa partilha e distribuição seja também ganhando peso nos salários.

Pode ser também uma forma de reter os jovens trabalhadores? Estamos a assistir a uma saída muito grande de jovens de Portugal que procuram trabalho noutro lado, ou que estão em Portugal mas a fazer teletrabalho para companhias estrangeiras e, portanto, não podemos dizer que os estamos a reter. Será essa equação salarial de que fala a forma de os segurar?
Diria que temos, como sociedade - sob pena de o nosso modelo de desenvolvimento falhar completamente -, de conseguir que haja um aumento geral das remunerações em Portugal, seja na média seja concretamente na dos jovens. No caso dos jovens a situação ainda é mais grave porque grande parte deles, mais de 60%, tem contratos precários. Se olhar para a remuneração média de um contrato dito precário a termo face a um permanente, tem logo uma diferença de 27% e logo aqui ficamos com a perceção de que se juntarmos as duas coisas, jovem precário e remuneração 27% abaixo da média, percebemos que é uma condição de fatalidade. Também na forma como o mercado de trabalho tem tratado os jovens é fundamental agirmos. Foi exatamente o primeiro repto que lançámos em sede de concertação social, a construção e o debate sobre um acordo para a valorização dos rendimentos e da competitividade e para a valorização dos jovens no mercado de trabalho. Isto foi exatamente o meu início na concertação social, que teve que ter alguns desvio em função dos tempos que vivemos. Mas acho que este é o tema central.

Portanto, é preciso voltar a esse tema na próxima legislatura?
É essencial voltarmos a este tema, mas é essencial também outro tipo de medidas que passem, nomeadamente, por uma nova estratégia de articulação entre o IEFP e as empresas. Dou alguns exemplos concretos do que o IEFP está a fazer, alinhando com as empresas a identificação das necessidades que têm para conseguir uma muito maior articulação e ligação ao mercado de trabalho, procurando um ajuste para não haver desfasamento das ofertas de emprego e até as colocações. Por outro lado, também um forte investimento, massivo diria eu, na dimensão da reconversão ou daquilo que se chama reskilling ou upskilling de formações. No fundo, mais uma vez, procurando adaptar as qualificações e desenhar as formações que são dadas. Serem mais curtas, mais adaptadas às necessidades do mercado. Estamos a começar com alguns projetos. Aliás, aproveito para partilhar convosco porque hoje é lançado um destes projetos-piloto, que me parece exemplar, em Portugal, Espanha e Suécia. É um programa construído em conjunto com grandes empregadores, em que à medida destas necessidades que se estima serem as dos próximos anos, desenha à medida formações curtas para reconversão, para se transformarem claramente em ativos indispensáveis.

E quantos trabalhadores é que podem ser abrangidos?
Isto é um projeto-piloto que estamos a iniciar, contamos que ele possa já no próximo ano abranger cerca de cinco mil pessoas.

Cinco mil pessoas em Portugal ou nesses países todos?
Em Portugal. Será desenvolvido com laboratórios de reskilling. Nesta fase, a ideia é avançar na área da indústria com três cursos muito direcionados, associados a manutenção, mecânica, eletricidade e operadores de produção. Ou seja, identificando com grandes empregadoras tendências de necessidade de recursos humanos qualificados em algumas áreas críticas e desenhando à medida as formações. Isto também implica uma descomplicação do próprio sistema.

Mas isso é fora ou dentro do ambiente escolar?
Isto é fora do ambiente escolar. É feito através de programas muito direcionados para reconversão de desempregados nestas áreas, com cursos curtos, para ter depois uma muito maior empregabilidade, mais uma vez fazendo um maior encontro entre a procura e a oferta. E assim também conseguimos uma maior valorização destas pessoas no mercado de trabalho. Já agora, em plena pandemia lançámos um programa que considero que virou também esta forma de olharmos para a ligação entre o mercado de trabalho e os trabalhadores, o upskill. Basicamente, o que fizemos foi, com empresas tecnológicas, identificar as tendências que identificam com competências necessárias nos próximos meses, nos próximos anos. Com formação à medida mas método diferente.

Uma vez que atravessámos a pandemia, há resultados que se possam já concluir daí?
Não... O sucesso é tão grande que já começámos a segunda edição. Numa primeira edição abrangeu 200 pessoas, nesta vai abranger mil, mas com um método muito interessante, inovador, que é um compromisso tripartido entre as empresas tecnológicas, o trabalhador e o sistema de formação. Este compromisso traduz-se, por um lado, no redesenho de um percurso formativo à medida destas competências por parte do sistema formativo, e este envolve universidades e politécnicos, e em troca as empresas que aderiram assumem o compromisso de no final do ciclo formativo ficarem com 80% destes trabalhadores com contrato sem termo e a um valor prefixado de 1200 euros. Isto é virar completamente a lógica de estarmos com uma formação sem destino à vista.

Falando ainda dos jovens mas do ponto de vista da Segurança Social (SS). Muitos daqueles de que falávamos trabalham de Portugal para o mundo e descontam noutros países os seus impostos, as suas contribuições para a SS. Que desafios traz o novo modelo global à sustentabilidade da SS?
Antes de mais dizer que é mesmo extraordinário ver a quantidade de trabalhadores portugueses que neste momento estão a trabalhar em Portugal para o mundo inteiro.

Mas ao mesmo tempo deixam de contribuir em Portugal.
Mas é extraordinário. É uma enorme oportunidade que estas novas formas de trabalho trazem para os trabalhadores portugueses com elevadas qualificações, que começam a ser procurados em qualquer parte do mundo, nomeadamente através de LinkedIn, etc., e que são selecionados pelas suas competências. Isto para dizer que estas novas formas de trabalho são uma enorme oportunidade para os trabalhadores, porque podem daqui de Portugal escolher a empresa para quem querem trabalhar, podem escolher o seu empregador em função das condições que o empregador lhes oferece. Mas também uma enorme oportunidade para as empresas que podem em qualquer parte do mundo recrutar trabalhadores que estejam em Portugal para estas funções. Dou-lhe esta nota porque é já mesmo uma realidade concreta. Visitei nesta semana um espaço de coworking na Guarda, que está cheio de trabalhadores portugueses a trabalhar para EUA, Alemanha, França...

E a pagar impostos nesses países.
Mas era isso que ia dizer, este é o click que temos de fazer. Nós procurámos, e estamos a procurar, uma forma de conseguir comunicar estes trabalhadores, sejam portugueses sejam estrangeiros que queriam vir trabalhar para Portugal, de uma forma chamada de remote workers ou nómadas digitais, como podem estar em Portugal e descontar em Portugal. Porque essa é uma das grandes questões mesmo para esses trabalhadores que querem ter um nível de confiança e estabilidade sobre as regras aplicáveis quando aqui estão.

E como os convencem disso se a carga fiscal em Portugal é muito mais alta que nos outros países?
Não é esse o feedback que tenho desses trabalhadores. A principal preocupação que têm é garantir que andam no sistema português. E a legislação que temos já o permite, ou seja, cada um destes trabalhadores pode, tendo a sua residência em Portugal, descontar em Portugal, seja para efeitos fiscais seja para efeitos de SS. Muitos deles não sabem é como.

Está a falar de trabalhadores estrangeiros que estão em Portugal?
Não, não. Portugueses que estão a trabalhar para empresas que têm sede ou que estão noutro país. Concordo consigo, as pessoas não sabem e acho que é essa a nossa grande missão neste momento, comunicar a estes trabalhadores como é que o podem fazer de uma forma simples e garantindo também uma mais-valia que Portugal tem. Acredito muito que este pode ser também um momento de viragem não só para garantir que os trabalhadores portugueses são valorizados por estas empresas estrangeiras que os estão a contratar, mas também como uma enorme oportunidade para os territórios do interior. Aproveitando este momento, lançámos um programa para atrair trabalhadores para o interior, no fundo oferecemos um prémio para os trabalhadores que se queiram deslocar para o interior, sejam os que já estão em Portugal, sejam estrangeiros que queiram vir. Ao mesmo tempo, numa iniciativa conjunta com o Ministério da Coesão, desenvolvemos uma rede de espaços de coworking nos territórios do interior precisamente para passar a ter espaços com internet, com todas as condições de que um trabalhador que trabalha online precisa. E já temos 88 espaços no território - convido-vos a irem visitar. Este da Guarda posso atestar por ele. É mesmo extraordinário ver o que está a acontecer. Ou seja, é também uma viragem do ponto de vista de oportunidade de combate a esta interioridade que parecia ser uma fatalidade mas que com estas novas formas de trabalho se abre para o mundo.

O salário mínimo vai subir e vai tender a empurrar o salário médio nacional. É certa esta dedução?
O nosso objetivo é esse. Se olharmos para o histórico, temos um aumento de cerca de 40% do salário mínimo desde 2015 [até 2022]. Se olharmos para o salário médio temos, entre 2015 e 2021/2022 - ainda não conseguimos ver o efeito -, de 16%, ou seja, há algum efeito de arrastamento mas claramente não tanto como aquele que foi o aumento do salário mínimo.

E esse efeito de alavanca do salário médio poderia ser uma forma de atrair mais mão-de-obra, uma vez que se passa a pagar melhor?
Eu acho é fundamental conseguirmos este aumento generalizado dos salários.

Mas lá está, não se faz por decreto. Portanto, como é que se faz?
Desde logo, a procura e a oferta vão gerar esta pressão, esta necessidade de aumento dos salários de forma generalizada. Por outro lado, também procuramos, e acredito muito que através da contratação coletiva nós podemos fazer este forcing em termos de aumento generalizado dos salários. Nós vamos fazer este ano aquilo que apresentámos em concertação social, um apoio para as empresas em termos de aumento de salário mínimo. Desta vez, foi distinguir as empresas que fizeram aumentos acima do valor legalmente previsto dos seus salários mínimos na contratação coletiva, dar-lhes exatamente o mesmo valor de apoio para aquelas empresas que têm os trabalhadores cujo valor fica abrangido pelo salário mínimo. Ou seja, estamos a dar desta vez um incentivo e um prémio a todas as que, por via da contratação coletiva, estão a ir além do valor fixado legalmente.

As contrapartidas não serão iguais para todas as empresas, é isso?
O apoio será para todos os trabalhadores abrangidos pelo salário mínimo nacional em 2021, mas além disso para todos os trabalhadores cujo salário já foi além do salário mínimo em 2021, fruto da contratação coletiva, ou seja, vamos premiar as empresas que, através da negociação coletiva dinâmica em 2021, foram além do que a lei estabeleceu como salário mínimo nacional. Isto alinhado com a preocupação que consta da proposta que esteve em discussão pública, da agenda do trabalho digno. Cada vez mais premiarmos incentivos e apoios diferenciados em função da valorização dos salários e da contratação coletiva. Quanto mais conseguirmos uma contratação coletiva dinâmica, diálogo social entre empregadores e empresas, mais vamos conseguir este objetivo que tem de ser uma missão coletiva comum de valorização dos salários e uma melhor distribuição da riqueza em Portugal.

Falando de empresas falamos de patrões e vem aí o teletrabalho por causa da quinta vaga da covid. Os patrões têm-se afirmado contra esta imposição. Compreende a postura e os argumentos?
Naturalmente, o que procurámos fazer foi diferenciar dois períodos. Um inicial em que há uma recomendação de teletrabalho, dependente de as partes acordarem ficar em teletrabalho ou não, e depois numa semana...

A primeira semana de janeiro, a semana da contenção.
... sim, associada ao adiamento do início das atividades letivas, em que, aí sim, o teletrabalho é obrigatório, com o objetivo de suster a propagação da pandemia, procurando ter uma diminuição da mobilidade de uma forma forçada. Aqui estão acima de tudo razões de preocupação sanitária. Portanto, é uma medida de proteção de todos nós. Quando é isso que está em causa acho que tivemos todos essa preocupação em primeiro lugar. Por outro lado, procurámos que esta medida fosse acompanhada desde logo da reativação das medidas de apoio que criámos ao longo destes quase dois anos.

Recupera-se o apoio aos pais que ficam em casa com as crianças.
Pois, é isso.

Qual é que vai ser a base do cálculo, a referência de remuneração para esse apoio? Vai ser o modelo que foi aplicado antes?
Vai ser um modelo igual, com base no mês de referência de outubro. Com as adaptações que o próprio mecanismo que fomos criando foi tendo. Estes dois anos também foram de permanente aprendizagem para todos nós. Acho que é evidente que ninguém estava preparado para estes momentos e esse também foi um património que todos conseguimos construir ao longo destes dois anos, foi-se mudando, aperfeiçoando os mecanismos que fomos colocando no terreno. A versão que vamos ter do apoio à família na primeira semana de janeiro já é a versão mais aperfeiçoada de todas as várias versões que foi tendo, procurando também responder aos vários problemas que depois foram detetados no terreno.

Vamos falar de apoios. Há o excecional à família, há o layoff simplificado para bares e discotecas, há o apoio ao rendimento dos trabalhadores, que irá até final de fevereiro. Porque é que não se estende também o apoio à redução da atividade dos trabalhadores independentes e de sócios-gerentes?
Esse apoio foi estendido por mais dois meses. Foi uma medida publicada agora num decreto-lei, no fim de semana. Foi estendido mais dois meses, precisamente fruto das circunstâncias, assumindo aquilo que temos sempre como compromisso. Vamos fazendo esta monitorização, adaptando, mantendo os apoios à medida da evolução da pandemia. Tem sido essa a nossa preocupação. Vou relembrando, não querendo ser exaustiva, o que tem sido a dimensão destes apoios que foram sendo criados ao longo destes dois anos, de uma forma completamente inédita e extraordinária. Mas a certa altura criámos um património de instrumentos que neste momento passam a estar disponíveis em qualquer situação de calamidade, é um património que deixamos para o futuro porque verdadeiramente ninguém os tinha.

Dizem os epidemiologistas que vamos ter mais pandemias, portanto este trabalho estará feito.
Passámos a ter este conjunto de mecanismos que neste momento são quase de ligar e desligar em função dos momentos. Só para termos noção: estas medidas extraordinárias que foram criadas neste momento chegaram a 3 052 000 pessoas. Basicamente, um em cada três portugueses foi abrangido por estas medidas de apoio. Foram 174 mil empresas, 4,7 mil milhões de euros de apoios pagos no âmbito da SS. Estou a falar só dos mecanismos ativados através da SS. E aqui tenho de deixar uma palavra de profundo reconhecimento a todos os trabalhadores da SS que se reinventaram completamente nas suas funções e mostraram a importância de termos um Estado social com capacidade de reagir quando tudo o resto falha, mostrando bem como as teses liberais falharam completamente quando olhamos para esta resposta à pandemia. Basta ver se compararmos com a resposta à crise anterior em que não houve a criação de medidas destas e tivemos o efeito no desemprego que sabemos que tivemos. Ou seja, isto é mesmo resultado de uma resposta de mobilização coletiva, de todos, e com o Estado social com uma capacidade de reinvenção total também nas suas funções para responder em momentos de emergência. Quando digo Estado social incluo todos. Incluo não só as entidades públicas, mas todos nós enquanto coletividade. As empresas que mantiveram, num cenário de completa incerteza, postos de trabalho, sem saberem quanto tempo iria demorar a pandemia; mas também os trabalhadores, que muitos assumiram perda de rendimento, se se lembram, no primeiro momento e com sacrifícios, nomeadamente de conciliação familiar brutais. Mas também tenho o setor social. O setor social foi extraordinário nesta resposta à pandemia, mostrando a sua capacidade de estar onde era preciso e numa permanente articulação com o governo.

Nem sempre o setor social foi bem tratado, quer pelo governo quer, sobretudo, pelos parceiros do governo, sendo às vezes tratado como um setor não social mas privado, como se as Santas Casas da Misericórdia e outras instituições, nomeadamente da igreja, integrassem um setor lucrativo e equiparado ao privado. Não sentiu isso com as negociações com os parceiros que suportaram o governo nestes anos?
Da parte do governo, a colaboração e a cooperação com o setor social foram extraordinárias, mas nos dois sentidos. Durante a pandemia, em termos de medidas extraordinárias para o setor social, nesta lógica de apoiar quem apoia e criar as condições para responder em primeira linha às pessoas mais vulneráveis, nós criámos medidas de cerca de 950 milhões de euros extraordinárias para fazer face ao momento que vivemos. E deixe-me dizer outra coisa, o setor social teve um papel fundamental até na criação de emprego, ou na absorção de desempregados, nomeadamente de alguns setores, como o turismo. Nós criámos um programa específico para o setor social, que se chama MAREESS, numa noite em que percebemos por identificação dos próprios parceiros no terreno... - basta lembrarmos aquelas imagens do que estava a acontecer em Itália ou em Espanha, em alguns lares, em que as pessoas eram encontradas abandonadas - e percebemos que era necessário criar de emergência um programa de reforço de recursos humanos. Porque em muitas situações os próprios trabalhadores dos lares tinham de ficar em isolamento ou ficavam contaminados e, portanto, era preciso encontrar reforços extraordinários. Criámos o MAREESS, que é um programa em que o IEFP paga uma bolsa adicional a pessoas que vão trabalhar para o setor social, e que neste momento já abrangeu 25 mil pessoas. Aliás, aproveito para partilhar convosco em primeira mão: este programa estava previsto terminar no final de dezembro e face à evolução da pandemia decidimos prorrogá-lo por mais três meses, durante o primeiro trimestre de 2022. E ao mesmo tempo criar um mecanismos de apoio excecional para quem converta estes trabalhos em contratos sem termo, de cinco mil euros, para apoiar as instituições neste momento.

Estávamos a falar há pouco das alterações à lei laboral, um dos pontos de rutura na negociação do último Orçamento do Estado (OE), que acabou chumbado. Agora o Parlamento será dissolvido. Que alterações ficam pendentes por causa da crise política?
Há toda a alteração ao Código do Trabalho que tínhamos incluído na proposta que foi aprovada em Conselho de Ministros e que esteve em consulta pública até ontem. Acho que temos ali um pacote muito profundo de mudanças na legislação laboral. Mas essencialmente, e destacando as medidas que me parecem mais evidentes que têm mesmo de ser levadas em frente neste compromisso social que todos temos de ter, são aquelas que têm mais que ver com os jovens, concretamente o combate à precariedade. É um pacote muito grande que temos em termos de medidas. É uma proposta muito profunda que responde exatamente a estas preocupações de valorização e reconhecimento dos jovens no mercado de trabalho, de combate à precariedade. Por outro lado também, uma grande preocupação da conciliação da vida pessoal, familiar e profissional que mais uma vez diz respeito essencialmente aos jovens, para conseguirem ter família. E também com uma grande preocupação de valorização dos salários no mercado de trabalho e uma medida muito interessante que consta da agenda do trabalho digno que é a discriminação positiva e a diferenciação de acesso a fundos comunitários e fundos nacionais por parte das empresas, para empresas que cumpram esta valorização do papel dos jovens e dos trabalhadores no mercado de trabalho.

Vamos falar de um outro motivo de desentendimentos entre o governo e o Bloco nas negociações orçamentais, que tem que ver com a persistência dos cortes do fator de estabilidade. Faz sentido manter essa penalização às reformas antecipadas, visto aplicar-se também um corte de 0,5% por cada mês de antecipação e haver também uma idade de reforma que avança ou recua com a esperança média de vida? É um corte que é para manter? Faz sentido mantê-lo em cima da mesa?
Antes de mais, o modelo português é elogiado internacionalmente como exemplar na grande capacidade que teve de garantir o aumento da sustentabilidade e da capacidade da SS garantir as gerações futuras. Fruto não só desta garantia deste modelo, mas também da evolução do mercado de trabalho, a verdade é que conseguimos nos últimos anos ter conquistas extraordinárias do ponto de vista de anos de sustentabilidade para a SS e acho que todos nós o que mais queremos garantir é este modelo que dá confiança não só às gerações atuais mas também às gerações futuras. Uma das grandes consequências da pandemia, acho que ficou evidente, foi a necessidade de termos um sistema cada vez mais inclusivo, que todos façam parte, que não haja pessoas que estejam fora do sistema como aconteceu durante a pandemia e que ficou à evidência demonstrado que estavam completamente desprotegidas. Tivemos permanentemente de encontrar medidas extraordinárias para responder às pessoas que não tinham qualquer rede de proteção. Isso também originou outra coisa que foi uma muito maior adesão das pessoas à compreensão de que temos de ter um sistema de proteção coletiva sustentável. E sustentável significa que tem de estar associado à esperança média de vida e garantir que as próprias contribuições e o número de anos que as pessoas contribuem para o sistema dá conforto a todo o sistema. Dito isto, com situações que devam ser excecionadas por serem especiais, na semana passada foi aprovada no Parlamento, por exemplo, a eliminação do fator de sustentabilidade e das reduções associadas à antecipação da reforma para as pessoas com deficiência, com grau de incapacidade com mais de 80%, ou seja, situações especiais devem ter um tratamento especial. A sustentabilidade do sistema deve ser, aliás, um dos nossos grandes debates nos próximos tempos, nomeadamente de encontrarmos novas formas de o tornar mais sustentável, mas acima de tudo trazer os jovens para dentro do sistema, acho que isso é fundamental. E mais de 500 mil pessoas declaradas à SS desde 2015 acho que é uma conquista social histórica, que não podemos pôr em causa.

Confirma a atualização automática das pensões a 1 de janeiro?
Sim, confirma-se. Estamos a preparar a portaria agora com base nos dados que foram divulgados em função da inflação.

Temos mais ou menos a mesma idade. Consegue garantir que daqui a 16 anos teremos reforma?
Aquilo que nós conseguimos como comunidade e como sociedade nos últimos anos foi exatamente conseguir ganhar anos do ponto de vista de sustentabilidade da Segurança Social, exatamente para garantir, e não só a vós, que o sistema está preparado...

A nós todos.
A nós todos e aos novos que estão a entrar no sistema. Dito isto, acho que temos de fazer muito mais e acho que este debate sobre a sustentabilidade... é o nosso compromisso social coletivo e é isso que nos mantém a todos a querer estar no sistema. Dito isto, com o reforço nomeadamente da diversificação de fonte de financiamento, acho que esse tem de ser um debate e um compromisso de todos nós. Conseguirmos mais fontes de financiamento para o sistema, nomeadamente num mundo de trabalho que tem de ser cada vez mais maleável e adaptável para que as pessoas consigam entrar dentro do sistema, e que é um sistema inclusivo e que não exclui as pessoas. Acho que este é o grande desafio, mas acho que isto nos une a todos. Portanto, certamente temos de encontrar aqui compromissos e acordos globais entre todos para que isto aconteça.