Tancos. Ministro da Defesa soube da "encenação", reafirma Vasco Brazão
O major da PJM disse na Comissão de Inquérito que a "encenação" da recuperação do material furtado foi toda planeada com o conhecimento da hierarquia "ao mais alto nível". O ex-ministro Rui Pereira entrou em cena com um parecer
"Não me calarei, contarei tudo o que sei, doa a quem doer", afirmou Vasco Brazão, um dos 20 arguidos do inquérito ao furto e à recuperação do material furtado nos paióis de Tancos, em junho de 2017. E o prometido foi cumprido.
Ouvido esta quinta-feira na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), o Major, que foi o inspetor-chefe da investigação da parte da Polícia Judiciária Militar (PJM), reafirmou que o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, foi informado sobre a "encenação" do "achamento" das armas, depois da mesma ter ocorrido.
"O diretor da PJM, numa diligência comigo, comunicou ao ministro da Defesa Nacional, na presença do chefe de gabinete, que o aparecimento das armas não tinha sido como publicitada, mas sim através de um informador", revelou aos deputados.
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Brazão não indicou a data específica desta comunicação, mas segundo o que já veio a público, terá sido poucos dias depois da referida recuperação das armas. A PJM tinha anunciado em comunicado que o material de guerra tinha sido recuperado na sequência de uma investigação, com o apoio da GNR de Loulé. "Foi necessário encenar um quadro para justificar a forma com tínhamos chegado o material", afiançou. O major contou que Luís Vieira lhe pediu para redigir um texto que "justificasse" o facto de ele ter ido ao local onde o material tinha sido deixado e a PJ não ter sido chamada.
O oficial do Exército esclareceu que, quando o "memorando" foi entregue ao chefe de gabinete, o general Martins Pereira (que já confirmou tê-lo recebido e entregou-o no DCIAP), o diretor-geral ligou, através do whatsapp, para o ministro e fez um resumo da informação: "a conversa foi muito rápida, foi dito que a recuperação do material não tinha sido como estava no comunicado e transmitido ao MP, mas através de um informador".
O ministro não mandou informar o MP
Vasco Brazão entende que era claro nesse telefonema que tinha havido uma "encenação, ou construção". Não ouviu a reação de Azeredo Lopes do outro lado da linha, mas sabe que o ministro "não deu qualquer instrução para fazermos de outra maneira, nem para informar o MP". A "única coisa que o diretor-geral me disse depois foi 'Brazão, vamos aguardar' e a partir daí não foi feita mais nenhuma diligência".
A ser verdade este contacto, quer dizer que Azeredo Lopes soube que a PJM tinha mentido ao MP e que tinha feito uma investigação clandestina, sem que tivesse tomado medidas ou informado as autoridades. Resta saber se, tendo estado ainda um ano em funções depois de saber isso, não partilhou a informação explosiva com mais ninguém, designadamente dentro do governo.
O major reconheceu que houve uma "investigação paralela" à oficial, que começou logo do dia a seguir ao furto e continuou clandestinamente mesmo depois de a Procuradoria-Geral da República (PGR) ter atribuído a titularidade do inquérito à PJ.
Vasco Brazão negou que se tivesse encontrado alguma vez com o referido "informador", assinalando que as suas ações da "investigação paralela" tinham sido sempre por ordem de Luís Vieira.
Segundo contou aos deputados, o coronel ficou "furioso" quando o inquérito foi para a Judiciária e terá logo dado orientações para que a PJM continuasse a trabalhar. "Ele dizia-nos para ficarmos descansados pois a investigação acabaria por vir para nós outra vez, que estava a tratar disso ao mais alto nível". E acrescentou: "Tudo o que fizemos foi por indicação do diretor-geral. Naturalmente que ele queria ser ele a recuperar o material. Queria e muito. O Exército é nossa casa. Se me arrombam a casa quero rapidamente recuperar as coisas. Ser posto de parte e serem os outros a recuperar é que não".
Parecer do ex-ministro Rui Pereira apoia a PJM
Brazão revelou que Vieira tinha a sustentar a sua posição um parecer jurídico do penalista Rui Pereira (ex-ministro da Administração Interna). "Ainda por cima com um parecer jurídico de uma pessoa prestigiada, que lhe deu uma enorme força para seguir aquela linha, pois a investigação viria para nós", sublinhou. O CDS entregou, entretanto, um requerimento para ouvir o professor e comentador televisivo.
De acordo com o major, "o diretor da PJM estava muito muito empenhado em salvaguardar o sucesso da operação e estabeleceu contactos ao mais alto nível", afirmou. Quando questionado pelo deputado do CDS. Telmo Correia, sobre o que queria dizer "ao mais alto nível", respondeu: "Era o que ele dizia. Terá de lhe perguntar".
Jorge Machado, do PCP, perguntou se tinha noção que a "investigação paralela era uma ilegalidade" e Brazão anuiu. "É preciso saber que estamos das Forças Armadas e é um ambiente diferente, não melhor, nem pior, diferente. Tínhamos um diretor-geral a dizer que estava a trabalhar ao mais alto nível para que a competência da investigação voltasse para nós e a dizer para irmos trabalhando".
O interesse do país era superior
Mas é obrigado a cumprir ordens ilegais, insistiu o deputado? "Não sou obrigado a cumprir ordens ilegaus, mas cumpri essas ordens porque o interesse do país era superior", afiançou.
O major garantiu ainda que " foram mais de duas dezenas de militares e civis que trabalharam nas investigações paralelas" e não apenas "as maçãs podres", referindo-se aos sete militares da PJM e da GNR de Loulé constituídos arguidos.
Ricardo Bexiga, do PS, fez pergunta que muita gente já terá pensado: "Como é que duas pessoas (Brazão e Vieira), com uma carreira e experiência tão grandes, se metem numa coisa destas, violando regras, incumprindo o despacho da PGR, sabendo que isso podia ter consequências na carreira militar?".
O major justificou assim: "Nunca fui carreirista, sempre cumpri ordens. Entendi, e todos entendemos, como uma missão a cumprir para a recuperação do material, mesmo que fosse à margem do processo, porque o diretor não se cansava de dizer que a questão da competência era uma questão de tempo, que mais cedo ou mais tarde o inquérito vinha para o nosso lado. Não ia ser eu a contrariar".
Numa declaração inicial à CPI, antes de começar a ser questionado pelos deputados, Vasco Brazão tinha reconhecido ter sido um "erro" ocultar do MP e da PJ a operação para resgatar o material de guerra e que deu depois origem à abertura de uma nova investigação pela PJ, designada de "Operação Húbris" - expressão grega para vaidade e arrogância.