País
01 fevereiro 2019 às 10h30

"Luther King teria vergonha do que se passou em Lisboa"

Uma semana depois da primeira manifestação de afrodescendentes na capital que foi do Império e com nova manifestação marcada para hoje, o DN publica relatos de quem marchou a 21 de janeiro e porquê, e que leitura faz do que sucedeu em Lisboa no dia que nos EUA é de Martin Luther King.

Fernanda Câncio

"O povo unido jamais será vencido." É talvez a palavra de ordem que a Avenida da Liberdade mais ouviu desde o 25 de Abril, esta que soa nas imagens de jovens negros que a descem, sorridentes, de telemóveis ao alto, a filmar. Uma palavra de ordem que nenhuma equipa de reportagem captou na tarde de 21 de janeiro, quando a primeira manifestação de afrodescendentes em 44 anos de democracia percorreu a avenida para, no centro da capital, mostrar o seu protesto contra o racismo e a violência policial na sequência da divulgação do vídeo sobre uma intervenção da PSP no bairro da Jamaica, no Seixal.

À partilha do vídeo que desencadeou a manifestação, seguiu-se a partilha dos vídeos que os participantes da manifestação fizeram, numa rede de informação paralela à dos media, que falharam o acontecimento. São o único testemunho dessa alegria, da calma na caminhada, da espécie de deslumbramento iniciático que se ouve em comentários de quem filma e de quem lhe responde: "É um grito da liberdade, é um grito da justiça, é um grito da igualdade"; "Isto nunca aconteceu em Portugal"; "Não vai parar por aqui. É só o começo."

Que aconteceu para que destas imagens, da atmosfera de comunhão e de conquista, de perplexidade até, plasmada naqueles rostos se passasse para a debandada face à carga da polícia e aos disparos de balas de borracha que fizeram a abertura dos telejornais no fim do dia?

Igor Regalla, 30 anos, ator, foi um dos manifestantes que partilhou vídeos da marcha no Instagram. Nos últimos excertos das filmagens, a alegria morre subitamente: no passeio frente ao hotel Tivoli, vê-se uma rapariga que chora, agentes da PSP em formação, escudo, capacete e cassetete na mão, um homem que levanta os braços e grita palavras de ordem imperceptíveis. E a voz de quem filma, num tom de estupefação: "Sério, qual a necessidade?"

"Estávamos ali a marchar pela paz"

Dias depois, Igor, nascido na Guiné e a viver em Portugal, em Oeiras, desde que tinha um ano (a família voltou para Bissau quando tinha sete, mas regressou para cá dois anos depois devido à guerra civil), aceita falar com o DN, e contar, por escrito, a sua experiência.

"Não estive com o grupo da manifestação desde que se mobilizaram do Terreiro do Paço até ao Marquês, mas assim que percebi que as pessoas lá estavam, através de posts de um amigo -- o rapper Vado MKA -- apanhei o metro e fui lá ter. Quando saí do metro vi a polícia a controlar perfeitamente toda a gente que ali estava. Prova disso é que as pessoas estavam cercadas na rotunda do Marquês pela polícia. A partir desse momento tenho tudo filmado no meu Instagram e tudo o que vou dizer está suportado pelas imagens que podem ver lá. Começámos a descer a Avenida da Liberdade ocupando apenas uma das vias. Estávamos a cantar cânticos como "o povo unido jamais será vencido". Apesar de estarmos a ocupar uma das vias, estávamos a agir de uma forma civilizada e tivemos, inclusive, pessoas paradas no transito solidárias connosco. Querem mesmo acreditar que até este ponto tínhamos razões para atacar a polícia? Para quê? Nós estávamos a acabar de provar aquilo a que nos tínhamos proposto. Que é preciso acabar com os abusos policiais sobretudo sobre pessoas com tons de pele diferentes e desculpem mas acho altamente irónico que tivéssemos que chegar a meio da Avenida da Liberdade para partirem para cima de nós daquela forma. Virei-me para trás e estavam todos de armas e cassetetes apontados a nós e a expulsar-nos para o passeio de uma forma completamente descabida. Não há justificação possível para termos incitado aquela carga policial porque ali, naquele momento, estávamos a "ganhar".

Nada justifica o que se passou e é vergonhosa a cobertura que estão a dar a esta situação. Tendo sido testemunha no local e depois ver as notícias, só me dá vontade de rir. O responsável da PSP no dia da manifestação gaguejou e não soube responder o porquê do início do tumulto. Acham mesmo que se nós tivéssemos pedras tínhamos passado da rotunda? Parem e pensem um bocado na lógica dos acontecimentos. Não faz sentido. Nós estávamos ali a marchar pela paz... Por que raio é que havíamos de borrar a pintura a meio da avenida quando estávamos cercados de solidariedade?"

O ator, que encarnou Eusébio no filme Ruth, estreado em maio de 2018, e atualmente faz parte do elenco da novela da SICAlma e Coração, soube da manifestação pelas redes sociais - "Através do Instagram de um amigo, na tarde do incidente no Bairro da Jamaica" - e decidiu ir "não por conhecer quem a tenha organizado, mas para testemunhar e tentar registar o que ia acontecer porque não consegui dormir bem depois de ter visto as imagens do que se passou no Bairro da Jamaica e queria ver quais iam ser os efeitos. Tenho um filho pequeno e temo que ele possa vir a ser vítima de cargas policiais como as que temos testemunhado."

Considera que "a manifestação, que começou por parecer um falhanço enquanto mensagem pela fraca adesão, pelo menos a quem esteve no Terreiro do Paço [para onde tinha sido convocado o encontro, às três da tarde de segunda-feira], acabou por se transformar numa quase marcha simbólica. Sentia-se que estávamos a andar na Avenida da Liberdade não só pela família que foi brutalmente controlada mas por toda a carga que aquela marcha estava a implicar."

A intervenção da polícia, diz, "estragou o momento: assim que houve a carga policial fui ter com as duas únicas pessoas que conhecia na manifestação e viemo-nos embora. O que testemunhámos ultrapassou todos os limites do que deve ser o serviço de segurança pública. E é trágico! Que fique claro: eu não odeio a Policia! Muito pelo contrário. Tenho-lhes muito mais respeito do que se possa imaginar... Mas isto não! Não é justo. Se fossemos, naquelas mesmas condições, uma minoria de gente rica, calculo que não tivéssemos sido escorraçados da Avenida da Liberdade. Martin Luther King, se estivesse vivo, tinha vergonha do que se passou na capital deste país."

"Não tinha noção de que Portugal é um país tão racista"

Como Igor, Miguel Santos, 22 anos, só foi ter com a manif já no Marquês. "Estava a trabalhar - trabalho na Salsa [loja de jeans] e no Lidl - e vi stories da manifestação no Instagram e resolvi ir lá ter quando saí. Quando cheguei ainda estava tudo bastante calmo, estava tranquilo. Os manifestantes estavam junto à estátua, na rotunda. Depois começámos a descer e de repente vi do nada pessoas a correr. Até comentei porque é que estavam a correr e depois percebi que os polícias estavam a bater. Um amigo meu levou um tiro de bala de borracha no braço. Isto não poderia acontecer. A justificação que deram para nos terem batido foi estarmos a ocupar a via pública, a impedir o trânsito. Mas eles continuaram a bater-nos no passeio. Eu estava de braços no ar a perguntar "porque é que estão a fazer isso?" - e eles aproximaram-se de mim e bateram-me nas pernas com o cassetete. Na altura não me doeu, mas quando cheguei a casa estava cheio de dores. Não fui trabalhar dois dias por causa das dores."

Também como Igor, Miguel, filho de cabo-verdianos nascido em Portugal e a viver em Santo António dos Cavaleiros, nunca tinha participado numa manifestação. "Nunca estive em nada de semelhante. Nunca tinha marchado na Avenida da Liberdade. Interesso-me pouco por política e os meus pais - ele trabalha nas obras, ela é doméstica -- também não se interessam. Mas senti-me bem em participar naquela manifestação porque estava a ir de acordo com o que quero para este país. O que acho que está mais correto. E fiquei com vontade de participar mais. Porque a partir do momento em que estou a tentar lutar usando a minha palavra e vêm-me bater, fez-me um clique, deu-me vontade de lutar mais. Espero que seja o começo de alguma coisa."

Quando chegou a casa, os pais estavam na sala a ver TV. "Disseram-me logo que já sabiam que aquilo ia descambar, e que estavam a dizer que aquilo eram pessoas do bairro da Jamaica. Contei-lhes que tinha estado lá e que achava que nem estava lá ninguém desse bairro. Eu por exemplo nunca estive na Jamaica, não conheço. Mas ver uma mãe a apanhar da polícia... Podia ser a minha. E no vídeo da Jamaica o que se vê é duas pessoas a ir de encontro aos policiais e vê-se a polícia a agredir a pessoa mais velha. Na minha ideia os policiais têm treino, se têm algum motivo para deter põem a pessoa no chão. A partir do momento em que as pessoas veem injustiça revoltam-se."

A injustiça, por exemplo, de "apresentarem a manif daquela forma. Fez-me sentir revoltado. A ideia que querem que fique é de que fomos para o centro de Lisboa fazer desacato. Querem difamar. Não tinha noção de que Portugal é um país assim tão racista. Se calhar porque sou mulato, não sei, talvez sinta menos o racismo. Mas na TV passaram o pior que houve - mas não o melhor. E houve coisas muito boas na manifestação, mesmo daquilo que me contaram antes de eu chegar. Só passaram umas imagens de um rapaz a dançar no Terreiro do Paço, como se fosse uma palhaçada. E para boicotar uma manif é muito fácil, é só chegar ali alguém e mandar uma pedra. Havia muitas pessoas a falar de atirar pedras e eu estive sempre a dizer que não fazia sentido. E sinceramente acho que a polícia queria que as coisas descambassem."

"A maioria das pessoas estava a chorar"

"Acredito que em resposta às agressões da polícia alguém tenha mandado pedras." Filipa Moreira, 20 anos, estudante de Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova e moradora em Queluz, foi à manifestação com um amigo negro - ela é branca. "Fui como aliada de luta, do movimento antirracista. O que mais motivou foi perceber que tinha sido convocada por jovens negros da periferia, um grupo de pessoas que não é conhecido pela sua participação política. E achei que era de apoiar. É essa uma das coisas que torna esta manif tão importante: ser de gente que não se costuma mobilizar para defender causas."

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Chegou ao Terreiro do Paço pouco depois das 15 horas. "Estava pouca gente e as pessoas partilhavam experiências." O grupo, diz, era sobretudo composto por negros e jovens -- puxando dos galões de cientista social, tenta percentagens: "95% e 97%". Passado um bocado de lá estarem, deslocaram-se para a frente do ministério da Administração Interna. "Já havia polícia ali, colocada em frente no ministério, mas tudo continuou calmo."

A seguir, em conversa, decidiram subir a avenida, ir até ao Marquês. "Fomos pela estrada [primeiro pela Rua do Ouro] e houve um grande apoio das pessoas que estavam nos carros, foi muito bonito. Quando estávamos a chegar ao meio da avenida apareceu a polícia de intervenção. Continuámos a subir até ao Marquês e aí começou a chegar muita polícia. Ficámos lá algum tempo, na rotunda, a manifestarmo-nos em paz. E depois começámos a descer, passando pelo meio da polícia e a polícia deixou-nos passar. Eu vinha no fim da manif, entre as últimas pessoas, ouvi barulho, olhei para trás e vi os polícias a correr com os cassetetes e as armas na mão com cara de malucos. Vinham sozinhos a correr, pelo que aquela versão deles de que os apedrejámos não faz sentido. Eles estavam tão longe de mim que estava no fim do grupo que para lhes acertar precisava de uma catapulta. O que eles disseram é falso. Ninguém os agrediu. Vieram ter connosco de repente para nos bater."

destaque "O que mais motivou foi perceber que tinha sido convocada por jovens negros da periferia, um grupo de pessoas que não é conhecido pela sua participação política. É essa uma das coisas que torna esta manif tão importante: ser de gente que não se costuma mobilizar para defender causas." centro

Filipa puxou do telefone para tentar filmar e foi para o passeio, porque viu a polícia a agredir quem estava na estrada. Depois começou a ouvir disparos. "Olhei à minha volta e vi várias raparigas a chorar, a dizer que estavam fartas de Portugal. Bateram em muitos rapazes, Vi um que não fez nada levar imenso com o cassetete. E vi duas raparigas brancas tentarem passar na barreira de polícia e os polícias deixarem e um rapaz negro não deixarem passar. Se eu fosse negra provavelmente ter-me-iam agredido. Fui empurrada para a estrada quando estava no passeio, nada daquilo fez sentido. E trataram-me por tu, com todos os palavrões." Suspira. "Foi horrível. Foi tão desigual que é ridículo. A maioria das pessoas estava a chorar."

Afirmando-se disponível para testemunhar num inquérito que haja sobre os acontecimentos, lamenta a ausência de jornalistas. "A RTP esteve no Terreiro do Paço mas depois desapareceu. E tantas coisas que há nas terrinhas e aparecem na TV e uma manifestação gigante, tão bonita, não teve lá ninguém. Porque foi muito bonito, foi algo histórico. Mesmo enquanto a polícia estava a bater as pessoas estavam a pedir para pararem com a violência. A mostrar cartazes contra a violência." A voz treme. "É tão triste ver a reação pública a esta manifestação. Tanta gente a dizer que são selvagens que não se sabem comportar, que receberam a polícia à pedrada, e a polícia é que nos recebeu à porrada."

"Queríamos ser ouvidos, não ser espancados"

"Percebe o quão triste é isto? Só pedimos para ser respeitados. Não percebo o que se passa pela cabeça das pessoas que só por termos uma cor mais escura acham que não merecemos respeito. Fui lá por causa daquela família do bairro da Jamaica mas fui defender a minha família também. Uma pessoa que é negra deve pelo menos perceber que tem de sair de casa e defender os nossos direitos."

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Jennifer King -- não fica claro se é o seu nome de registo ou se o que escolheu usar - tem 18 anos. Fala com o DN ao telefone, a caminho daquilo que acreditava ser uma nova manifestação, na quinta-feira 24 - a partir de uma convocatória da plataforma Em Luta, que marcara um encontro na Almirante Reis às 18 para pintar faixas para a manifestação no dia seguinte no Seixal.

Informada de que não se trata de uma manifestação, decide ir para casa - mora em Carnaxide. É aí, no metro, que, a meio da entrevista, se comove. Pede desculpa. "Dói muito falar disto. E tenho medo que ponha coisas no jornal que eu não disse. Porque não aguento mais sermos assim tratados. Não aguento mais ser olhada como me olham. É uma dor tão grande. Nós queríamos ser ouvidos, não ser espancados. Por favor não distorça o que eu digo. Mas estar-me a ligar para me ouvir deixa-me feliz."

destaque "Dói muito falar disto. Porque não aguento mais sermos assim tratados. Não aguento mais ser olhada como me olham. É uma dor tão grande. Nós queríamos ser ouvidos, não ser espancados." centro

O DN chegou a Jennifer, como à maioria dos entrevistados, por passa palavra: encontra-se alguém que esteve na manifestação, essa pessoa identifica outra, que por sua vez identifica outra. Algumas têm a certificação da presença nos vídeos publicados, como Igor, outras são identificadas nesses vídeos; outras, como Jennifer, enviam vídeos e fotos como prova de lá terem estado.

"Fui eu e mais três pessoas, uma que mora em Lisboa e duas da Margem Sul. Vi no Instagram que ia haver aquela concentração e decidi ir. No Terreiro do Paço estavam talvez umas 50 pessoas. Mas depois apareceu muito mais gente, fiquei muito contente. As pessoas que lá estavam têm um poder de mente muito grande. Porque dissemos que não queríamos lutar e mesmo assim apanhámos."

Na verdade, confessa, "já calculava que ia dar para o torto: nunca acontece nada de bom para nós nestes casos. Mas prefiro levar que ficar calada." Ganha balanço, comove-se outra vez: "Acho que era capaz de dar a minha vida por esta causa."

Dar a vida. É disso mesmo que fala um rapaz num dos vídeos enviados por Jennifer, em que se veem pessoas a discursar junto à estátua do Terreiro do Paço: "Primeiro vamos com a diplomacia. Mas se for mais além, eu que sou guerreiro dou a minha vida. Estou-me a cagar."

A rapariga que fala a seguir põe água na fervura: "Atenção atenção, vamos agir com coerência, com cabeça. Porque o povo sempre diz que o africano é agressivo. Que o africano não tem mind [mente]. Então vamos agir com coerência, com mind. Vamos dar as mãos e falar para o mundo. Vamos usar as redes sociais para dar-nos voz. Não podem só ser para ostentar-nos."

"Tenho filhos, não lhes posso deixar esta herança"

Uma mulher alta de óculos escuros redondos toma aí a palavra: "A propósito das redes sociais: estamos a fazer um programa para transformar os números em caras. As nossas histórias têm de ser ouvidas e para isso cada um de vocês tem de ter a coragem de as contar, para saberem as nossas histórias de injustiça de cada dia. Portanto por favor venham ter comigo, vou ficar com o vosso contacto. Mas a luta tem de ser conjunta, porque se nós não estivermos unidos e coordenados não vamos conseguir nada. E outra coisa: não podemos usar violência. Temos de ter atenção à linguagem. Somos demasiadamente acusados de agressão e de uso de má linguagem. Temos de mudar a narrativa. E para isso educação, educação, educação." Ouvem-se aplausos. "Para mudarmos a nossa história temos de mudar a narrativa."

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A mulher alta é Myriam Taylor, 42 anos. Criou uma plataforma, a Muxima [que significa "coração" em kimbundo, uma das línguas angolanas], precisamente para "apresentar alternativas de narrativa." A recolha de testemunhos que anunciou no Terreiro do Paço começou em novembro. "É uma recolha em vídeo, que queremos propor à RTP África para passar uma história todos os dias. Histórias na primeira pessoa de quem foi vítima de racismo."

Só soube da manif, sublinha, por causa uma jovem da sua equipa. "Foi uma manifestação convocada por millennials [jovens nascidos nas duas últimas décadas do século XX ou já no XXI]. Tenho uma millennial a trabalhar comigo e disse-me. Eram sobretudo miúdos que ali estavam, nenhum dirigente associativo foi alertado, havia muito poucos adultos." Ri. "Andei ali a reboque dos millennials."

destaque "Não podemos usar violência. Temos de ter atenção à linguagem. Somos demasiadamente acusados de agressão e de uso de má linguagem. Temos de mudar a narrativa. Para mudarmos a nossa história temos de mudar a narrativa." centro

Myriam nasceu em Albufeira, para onde os pais foram viver quando fugiram de Angola em 1976. Esteve sete anos a viver na Holanda, de onde chegou, com o marido (Paulo Taylor) e os filhos, há três. Fundaram uma empresa de biotecnologia e cosmética, gerem uma galeria na zona da Estrela e promovem conferências e colóquios. "Fizemos o primeiro colóquio sobre o 27 de Maio de 1977 em Angola [uma alegada tentativa de golpe contra Agostinho Neto que dividiu o MPLA e foi reprimida de forma sangrenta nos dois anos seguintes] e estamos a preparar para junho um outro sobre as questões da mulher. Tentámos criar um negócio com impacto social."

Mas esta mulher diferenciada, de aspeto sofisticado, tão longe da realidade dos bairros de lata ou dos bairros de realojamento, não se sente imune à discriminação. "Eu própria já fui presa. Estava num café em Coimbra e fui mal servida e pedi o livro de reclamações. E o dono do café chamou a polícia, e os agentes disseram-me "Ponha-se lá fora". Como reagi e lhes exigi que agissem de acordo com a legalidade e se inteirassem do que se tinha passado fui levada para a esquadra. Há perseguição pelo fenótipo, há." A voz falha. "Estamos todos numa situação limite, são muitos anos de silêncio, de invisibilidade, de as nossas questões não serem ouvidas. Tenho filhos, não lhes posso deixar esta herança."

Como Jennifer, Myriam chora, pede desculpa. "Sabes, sempre que tentamos enfrentar o sistema somos silenciados. Chegámos a um momento de estrangulamento extremo. Não foi uma surpresa que finalmente tenha havido uma manifestação assim. Estava à espera disto há anos. E quem me dera que mais gente tivesse ido."

destaque "Sabes, sempre que tentamos enfrentar o sistema somos silenciados. Chegámos a um momento de estrangulamento extremo. Não foi uma surpresa que finalmente tenha havido uma manifestação assim. Estava à espera disto há anos. E quem me dera que mais gente tivesse ido." centro

Quanto à forma como a manif acabou, também não a surpreendeu. "Para ser sincera já esperava que algo do género se passasse. Por um lado eram muitos miúdos, havia a possibilidade de dar para o torto. E por outro achei que havia ali infiltrados. Vi dois rapazes brancos a dizer "Vamos foder esta merda toda." Vi-os a usar palavras de ódio. Pensei que podiam ser de extrema-direita. Há sempre quem se aproveite destas situações para dividir ainda mais. É muito fácil acender um rastilho - basta ter um grupo de pessoas que queiram incendiar. E há pessoas que estão tão descontentes, com a vida tão lixada, que estão por tudo."

Até abandonar a manifestação, por volta das seis da tarde, quando esta chegara ao Rossio ("Tinha de ir buscar os miúdos"), porém, não viu nada de grave, nenhum enfrentamento com a polícia. A forma como depois a manifestação foi retratada e os comentários que suscitou deixaram-na revoltada. "Assusta-me pensar que há muita gente declaradamente racista em Portugal. Mas não vou desistir de lutar de forma pacífica. Esta é uma discussão necessária, que tem de ser encarada de forma adulta. E a primeira forma de lidar com um problema é assumi-lo. É preciso haver maturidade, assumir publicamente que o ele existe. O governo tem de assumir que o racismo é estrutural e que tem de encontrar mecanismos para lutar contra ele. É urgente e devia ser a prioridade de qualquer agenda política."

Esta prioridade que nunca mais é prioritária arde, para quem espera, como uma ferida nunca sarada. Como Myriam, Igor Regalla nunca foi miúdo de bairro de lata ou de bairro social; filho de um empresário e agora ator, não se pode considerar um marginalizado. Mas em 2016, quando a SIC lançou o programa E Se Fosse Contigo, com um episódio em que um casal de namorados, ela branca e ele negro, era confrontado num local público, de forma racista, pelo suposto pai da rapariga, para aferir da reação de quem assistia, Igor fez de namorado. "Foi uma situação que me marcou. Houve um dos takes em que me desmanchei a chorar por causa do discurso de uma das senhoras que interveio."

Revelação de uma ferida funda, de uma dor de que talvez nem tivesse até aí consciência. Uma surpresa como aquela com que se confronta quando, num dos vídeos que filmou durante a manifestação, se descobre a gritar e a praguejar, revoltado, face à agressão de seis polícias a um dos manifestantes. "Estava mesmo exaltado. Aflige-me um bocado ouvir-me naquele registo, não costumo ser assim. Temos de nos acalmar. Todos! Ninguém precisa de nada do que se está a passar... A anarquia não é solução mas a repressão também não."