"As marcas querem pessoas reais na publicidade"
Almoço com Fred Canto e Castro, fundador da Sonder
Quando chego ao The Therapist, Fred Canto e Castro já me espera, sentado na esplanada, a escrever no caderninho de capa vermelha. Parece que entrei num enredo de ficção. Um tronco tosco a fazer de mesa com corações de alfaces e molhos de rosmaninho a decorar a longa fissura ao meio, o verde a contrastar com o cor-de-rosa vivo da fachada, o ruído metálico escorrido da bicicleta ao lado que alguém pedala para dar energia à máquina de sumos. O restaurante encaixa com total perfeição na mistura de gente vibrante que inunda o LX Factory, incluindo a Sonder - que recruta "pessoas reais" para filmes publicitários -, e o meu convidado parece ter nascido naquele ambiente, para onde mudou a empresa e a vida. "Faço tudo aqui. Vivo aqui ao lado, almoço quase sempre aqui, trabalho no primeiro andar da porta ao lado."
Abre um sorriso, pousa o caderno e, com a descontração de um miúdo de 24 anos, diz-me, apenas um momento depois de nos conhecermos: "Eu venho sempre aqui, mas se não gostares podemos ir a outro sítio." No The Therapist a comida é saudável, mas a variedade e o sabor são fácil garantia de agradar a qualquer cliente. Aliás, Fred tem cuidado com a alimentação, evita ao máximo comidas processadas, mas de resto come de tudo - e até se confessa guloso: "Às vezes chego a trocar o tradicional almoço por três sobremesas." Não hoje, porém. Optamos ambos pela moqueca de salmão, a minha com o arroz integral que lhe compete, a dele só com salada, e um chá de limão e gengibre para refrescar.
De cabeça organizada, metódico e extraordinariamente lúcido, Fred começa a explicar-me como aos 15 anos tomou uma decisão que lhe mudou a vida.
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"Nessa idade, ninguém sabe o que quer fazer, e eu não era exceção. Mas tomei uma decisão: que iria viver sempre pelas minhas regras. Se falhasse, falharia, tentaria de novo, mas seria sempre pelas minhas regras." Nessa altura, pôs os pais - e a sua resolução - à prova pela primeira vez: ao fim de poucas semanas de aulas, como não gostava da professora de Matemática, informou-os de que ia cancelar a disciplina e fazê-la em exame no fim do 10.º ano. "Os meus pais resistiram, mas perceberam que eu não ia desistir e acabaram por aceitar." Fez o exame: teve 18.
De então até agora, a sua ainda curta história parece saída de uma biografia de Silicon Valley. Talvez ainda a escreva, com base nos cadernos cheios de factos, momentos e pensamentos que guarda desde esses anos. "Comecei aos 15 anos a escrever estes diários e nunca mais parei", confessa, a segurar o tal caderninho vermelho como um tesouro. "Nos últimos quatro anos, escrevi 4 mil páginas. Isso ajuda-me a pensar."
Apesar de o pai ter uma produtora de filmes publicitários, a publicidade estava então bem longe do seu horizonte. Excelente aluno, o que o apaixonava eram as ciências. "Adorava bioquímica, astronomia, física, era até um pouco nerd, mas como também jogava futebol também era fixe." Ri-se. Mas rapidamente percebeu que nessa área teria fortíssimas probabilidades de acabar a trabalhar num laboratório - e a vida ao ar livre e entre pessoas é outra paixão de que nunca quis abdicar. Passou-lhe então pela cabeça que talvez viesse a criar uma empresa na área de ciências e quando chegou a hora de escolher um curso optou por Gestão - segunda opção: Astronomia. Entrou na primeira, mas acabou por fazer uma única cadeira: Cálculo I. Acontece que, aos 18 anos e insatisfeito com a recente vida universitária, num jogo de All Stars cruzou-se com alguém que lhe elogiou as capacidades futebolísticas. Nunca jogara nada profissionalmente, mas em menos de nada dava nova viragem à vida.
"Tive um clique e escrevi no quadro branco que tinha no quarto o meu objetivo: primeiro ano no Cascais, segundo ano no Estoril, terceiro e quarto no Sporting, quinto ano no Real Madrid." Não era sonho, era mesmo obje-tivo e começou a trabalhar para isso, assim que a família ultrapassou o choque - houve reunião de família e tudo", conta. "Há mais pessoas a falhar por não tentarem do que por tentarem. Sempre acreditei nisso." Por isso, apesar dos nervos e dos olhares de esguelha dos que ali estavam depois de anos a marcar golos, não desanimou no treino de captação. "Até me deu pica! Sempre fui motivado pela adversidade." Ficou na equipa, como guarda-redes. Pouco depois, ligava-lhe o presidente do Cascais para o convidar a experimentar-se naquela posição em futebol de praia. "Na véspera do jogo, fui estudar as regras - aquilo só existia há dois anos... - e quando lá cheguei só pensava o que é que estava ali a fazer! Isso acontece-me muitas vezes", ri-se. Outro desses momentos deu-se quando recebeu um telefonema, semanas depois, a convocá-lo para um estágio da seleção. "Aquilo foi duríssimo, mas passado poucos meses estava a jogar a meia-final contra o Brasil, no Dubai." Portugal ficou em 3.º lugar, mas a carreira de Fred como futebolista de praia estava prestes a terminar: um choque durante um jogo, uma lesão no joelho que o obrigou a parar um ano e fim.
Para se entreter, voltou à faculdade e teve de analisar, para um trabalho, uma empresa. Escolheu a produtora do pai e foi assim que se apercebeu de uma lacuna no mercado: "As marcas querem pessoas reais na sua publicidade", mas as agências quase só tinham modelos profissionais. "Não são pessoas absolutamente normais, têm de ter algo diferente, uma atitude, um brilho - mas estão longe de ser modelos. E essas não sabem que podem fazer anúncios, era preciso criar nelas esse desejo." E foi essa a base da Sonder.
Com 20 mil euros emprestados pela avó paterna, com quem sempre teve uma relação especial - "disse que lhos devolveria com juros, e foi o que fiz, há dois anos" -, instalou um embrião de empresa no seu quarto, passou a dormir na sala e nos meses seguintes dedicou-se em exclusivo ao projeto que imaginou. Hoje, quatro anos passados, fatura mais de meio milhão por ano.
O nome, conta-me enquanto vamos avançando na moqueca de salmão, veio anos antes de sequer imaginar que o faria - cruzou-se com essa palavra na página de Facebook da Wordporn. "Significa aquela sensação de que todos estamos de alguma forma conectados, mesmo que nos vejamos uma única vez na vida. E apaixonei-me por ela - cheguei a pensar que um dia, se criasse uma marca de roupa, lhe chamaria assim. Eu, que não ligo nada a isso... devo ter umas três camisas e dois pares de calças."
Mas nem tudo foi fácil. "Nas minhas contas, sendo que eu não fazia ideia do que estava a fazer, precisava de uns 40 mil para arrancar, mas era o dinheiro que tinha, por isso avancei superfocado. Foi das coisas mais importantes que a empresa me ensinou: a ter de aprender essa ginástica. A necessidade aguça mesmo o engenho. Tenho muitos amigos empreendedores com milhões de investimento - o que é bom porque lhes dá imensa capacidade de crescimento, mas eu fui obrigado a ser muito focado, a espremer cada cêntimo." Vivia a Sonder como uma obsessão. Dormia no escritório, aberto ali no LX Factory em fevereiro de 2015, passava os fins de semana a pintar, subtraía o economato ao pai... "Acho que ele nem sabe disso", ri-se. E nesses primeiros dois anos nem salário recebia - até tinha lucros, mas reinvestia tudo até ao último cêntimo.
Confessa que se soubesse o que custava, talvez nem tivesse começado. "Mas acredito que nos fazemos grandes no caminho e tenho uma certa necessidade de ter coisas novas a acontecer na minha vida, nesta área. Gosto disso. E sou muito intenso em tudo o que faço."
O prato de Fred esvazia-se devagar, a velocidade inversa ao entusiasmo com que conta a viagem que o levou até ali. Explica-me que a Sonder não trabalha com as marcas mas com as produtoras que têm as marcas como clientes - e a do pai foi a primeira, quase um teste à sua ideia. "Hoje ele é um bom cliente, mas foi horrível, ao princípio... primeiro porque toda a gente achava que a empresa era dele e depois porque ele era mais exigente comigo do que com qualquer outra agência."
Ainda que num passado recente, esses dias estão muito longe da empresa que até já abriu em Barcelona (em abril) - o Instagram foi o primeiro cliente final, mas já contam 16 - e tem vontade de se expandir. "É um setor que há 40 anos que não é disrompido e nós temos tudo para sermos os agentes dessa disrupção à escala global."
Arranjar clientes não é difícil, ao contrário de encontrar as tais pessoas reais. "Chegamos a encontrá-las às 04.00, numa ida à casa de banho de uma discoteca, enquanto fazemos scroll down no Instagram... Aqui já toda a gente tem o meu cartão. O foco principal é servir o melhor possível o cliente final, a produtora que quer pessoas autênticas. Por isso é essencial procurar sempre, em todo o lado, nunca parar de encontrar pessoas novas. Chegamos a agenciar cem por mês."
Para quem já conhece a Sonder e quer ser agenciado - hoje o prato forte do recrutamento da empresa -, também há solução à medida. "As pessoas inscrevem-se no site e são ajudadas por um bot incrível - desenvolvemos a nossa própria tecnologia, somos muito tech driven, digitais a sério, e isso permite-nos trabalhar em qualquer parte, a partir daqui. Quando um cliente pede pessoas com determinadas características, nós filtramos a base de dados pelo que eles querem, enviamos, eles escolhem e chamamos os selecionados para casting. Se eles ficarem, então nós recebemos por isso." É tão difícil e competitivo quanto parece, mas ao fim do dia "quem tem pessoas mais autênticas ganha". E a Sonder já tem currículo suficiente para estar referenciada em todas as produtoras do país. "Os clientes gostam de trabalhar connosco e orgulho-me disso."
Já com o almoço a chegar ao fim, confessa-me outra coisa que o deixa feliz: a oportunidade de poder partilhar a sua experiência, dificuldades e a forma como as ultrapassou com os outros. "Faço cada vez mais talks, sobretudo em universidades. E também partilho histórias no LinkedIn e no Instagram." E a sua mensagem passa de tal maneira que quase todos os dias é abordado por pessoas que nem conhece. Em breve, vai fazer meia dúzia de pequenos-almoços com alguns desses, que queriam conhecê-lo, ouvir mais sobre a sua experiência. Devolver à sociedade, literalmente.
Por incrível que pareça, nestes quatro anos de turbulência ainda conseguiu apaixonar-se. Num momento de insatisfação - que tinha frequentemente apesar de a vida lhe correr muito bem -, decidiu ir viajar. E nesses dois meses passados na Ásia, antes de seguir com os amigos para a Tailândia, o Camboja e Laos, passou uma temporada sozinho em Myan-mar. "Lembro-me de escrever então num dos meus caderninhos uma coisa perigosíssima: que queria greatness, queria causar impacto, dar um contributo ao mundo, e que para isso talvez tivesse de abdicar da minha felicidade. É completamente falso, hoje sei disso."
Dias depois, sentado em frente a um pôr do sol mágico numa cascata do Laos, a beber cerveja com os amigos, percebeu que estava errado: precisava de começar a aproveitar a vida, esses pequenos momentos que realmente fazem a felicidade. Mais tarde, ao ouvir uma música de Queen que já ouvira milhares de vezes (Somebody to Love), teve uma revelação sobre o que realmente lhe provocava aquele vazio: a falta de alguém com quem partilhar aquelas boas experiências.
"Quando voltei e entrei no escritório, estava lá uma miúda nova, de costas, e senti qualquer coisa estranha." Depois de uns meses a tentar evitar o inevitável - "eu era chefe dela, não era fácil..." -, Constança acabou por sair da Sonder e o que Fred identifica como uma força superior finalmente juntou-os. Agora, é entre ela, os melhores amigos e a família que divide o tempo livre. Mas também consigo próprio - "todos os dias levanto-me às 07.30, faço o pequeno-almoço, embalo--o e vou para a praia. Essas primeiras três ou quatro horas são só para mim", confessa.
Antes de sair, lê as mensagens que escreveu na porta quando voltou da Ásia: "Não leves a vida muito a sério - porque podemos ser crianças e conquistar o mundo ao mesmo tempo -; e nunca te esqueças de que o real objetivo da tua vida é a jornada, se não só terás meia dúzia de momentos de realização e felicidade. A vida é conjunto de agoras, temos de tirar prazer de cada instante", explica.
Pergunto-lhe, antes de nos despedirmos e depois de me mostrar o inspirador escritório da Sonder, ali mesmo ao lado, se regressa muitas vezes aos seus caderninhos. Confessa que sim. "Constantemente! É giríssimo ver a mudança que vivemos de um ano para o outro, ler aquilo por que passámos, recordar episódios de que já nem nos lembrávamos. Às vezes tenho vontade de gritar: seu burro, não é assim que se faz! É como vermos a nossa vida naquelas linhas." Quem sabe se um dia elas não se transformam mesmo em filme?
The Therapist
Moqueca de salmão
Chá de limão e gengibre
Total: 15,50 euros