País
28 fevereiro 2019 às 17h51

Sismo 1969. O mar borbulhou e o país saiu à rua em pijama

Há 50 anos, Portugal Continental era sacudido por o maior terramoto desde o sismo de 1755 - morreram 13 pessoas e algumas casas caíram. A população ficou assustada e, enregelada, passou a noite fora de casa.

Graça Henriques

Foram quatro minutos infernais - sensivelmente entre as 03:41 e as 03:45. Um país, em pânico, saiu para a rua meio despido ou em pijama. Portugal era assolado pelo maior tremor de terra desde o sismo de 1755. O sul, nomeadamente o Algarve, e a região de Lisboa foram as zonas mais atingidas pelo sismo de 7,9 na escala de Richter, que se fez sentir também em Espanha e Marrocos. Morreram 13 pessoas, duas em consequência direta do abalo e 11 indiretas, algumas "acometidas de síncopes", e houve várias dezenas de feridos.

Aquela madrugada de sexta-feira, foi descrita como dramática pelos jornais da época. "Com a terra tremiam os homens e as mulheres que a povoam. Porque ontem só duas espécies de pessoas não tremeram, de novo os inconscientes e os mentirosos", escrevia o Jornal de Notícias.

O epicentro teve lugar no Oceano Atlântico, a sudoeste do Cabo de São Vicente (Vila do Bispo). Era nesse mar que navegava o "Manuel Vicente", um navio misto de cargas e passageiros que fazia a ligação entre Portugal e Angola. E foi esse mar que o comandante da embarcação viria a descrever como o borbulhar de uma panela de água a ferver.

No dia seguinte ao sismo, o DN dedicava toda a primeira página ao acontecimento: "Uma eternidade em breves segundos: Levará muito tempo a esquecer o pavor da última madrugada de fevereiro", titulava.

Todos na rua apesar da chuva gelada

"'Terrível! Foi medonho!..' Assim se expressaram muitas pessoas tendo no rosto a máscara do medo elevado à mais alta escala, com quem contactámos imediatamente após o prolongado e violento abalo de terra, e que se acotovelavam nas ruas, possuídos do maior e natural receio da repetição do fenómeno telúrico. Estavam em trajes reduzidos, muitas tal como se encontravam deitados, e que, na ânsia de saírem para o exterior, debandaram de casa - que chegaram a acreditar que desabava - sem se preocuparem em agarrar qualquer agasalho", lia-se na reportagem feita nas ruas de Lisboa, quando o país continuava acordado, receoso do que ainda poderia estar por vir.

A reportagem prossegue: "No exterior todos tremiam de frio; a humidade era muita; caía uma cacimba, mais rigorosamente uma chuva miudinha, que penetrava nos ossos, refreando todo o ser. Mas muitas pessoas nem por isso davam, tal a angústia que os dominava por completo."

O pânico voltou às 5:28, quando se sentiu uma réplica de pequena intensidade. Mas "o estado atormentado de todos os espíritos" levou a crer que era outra vez um abalo de grande intensidade.

Muita gente passou a noite na rua, as fotos mostram pessoas nos passeios, outros em bancos de jardim, embrulhados em cobertores.

A noite foi de sobressalto, de medo. Lisboa acordou com os habitantes ainda fora de casa, cada um comentando o que vira e o que sentira. Muitos diziam que o céu tinha tomado uma coloração rubra, a fazer lembrar uma aurora boreal, depois viram uma rápido mas intenso clarão. O dia amanheceu com poucas nuvens no céu, com o sol a brilhar, mas com muita destruição: carros soterrados por paredes que caíram; os hospitais de São José (onde uma parte teve de ser evacuada) e o Curry Cabral também ficaram danificados.

Quando os telefones não tocaram

Era um tempo em que não havia telemóveis e fizeram-se filas de gente de roupão e camisa de dormir junto às cabines telefónicas: todos queriam saber se os seus estavam a salvo, mas as comunicações não estavam fáceis, com falta de rede, aparelhos destruídos, linhas constantemente impedidas.

Quem não conseguia fazer a ligação, e eram muitos, ligava para o 13, o número das avarias, situado na Rua da Trindade, em Lisboa, onde estavam de serviço nessa noite 25 telefonistas - "Seres humanos emocionáveis e sensíveis como todos nós. Simplesmente acontecia que naquele posto, a mulher tem de ser a telefonista. E não pode abandonar o posto. Foi, portanto, com com lágrimas e nervos à flor da pele que esse punhado de raparigas continuou a atender, a trabalhar, a possibilitar que outras pessoas expandissem as mesmas lágrimas e dessem largas aos mesmos nervos", escrevia o Diário de Notícias.

Às três da manhã de sábado ainda havia entre 10 mil a 12 mil ligações telefónicas por fazer de Lisboa para o resto do país.

Algarve com aldeia destruída

No Algarve, o cenário era mais grave. A destruição foi maior, com a aldeia de Bensafrim, próximo de Lagos, a ficar praticamente destruída - cerca de 50 habitações foram deitadas ao chão pelo terramoto. Nesta região, houve muitas casas e monumentos, sobretudo igrejas, afetados pelo sismo.

O Hospital de Castro Marim, conta o enviado do DN, ficou praticamente destruído. Na povoação de Casseia, várias casas vieram abaixo e a igreja, reconstruída após o terramoto de 1775, sofreu danos consideráveis.

O DN conta o caso de Paulo Alexandre, de três anos, de Boliqueime, salvo pelos avós, que o retiraram do berço onde estava quase sufocado por pedras e pelo entulho. Em Lagos, na zona de São José, próximo do quartel, uma família salvou-se por um triz - mal puseram os pés na rua, a casa onde habitava desabou em ficou em ruínas.

A cadela morreu mas poupou vidas

A dois de março o DN dava conta de um país a refazer-se da emoção causada pelo abalo de terra, com Marcello Caetano a visitar o Hospital de São José, que tinha sofrido danos consideráveis, e onde quase mil pessoas já tinham tido alta: "Agora sim, está decente", disse o presidente do Conselho depois de se deslocar à sala de observações. Marcello Caetano esteve também no gabinete da Central de Distribuição "onde um funcionário, o senhor Carlos Nogueira Leitão, trabalhou 29 horas, sem descanso, na coordenação de transferência dos desalojados", escreve o DN.

O país estava a refazer-se do susto, ao mesmo tempo que iam sendo conhecidos episódios da noite dramática. Como a da cadela eletrocutada. Escreve o DN: "Enlouquecida pelo tremor de terra, uma pequena cadelita, saltando latidos, corria sem rumo no Beco dos Toucinheiros, em Xabregas. Por ali também corriam, dominadas pelo pânico de que estavam possuídas diversas pessoas, homens, mulheres e crianças. De súbito, a cadelita tombou no solo, inerte. É possível que se ninguém se apercebesse disso, se o facto não tivesse sido precedido por faíscas, circunstância que alertou a maioria dos que deambulavam no local."

A cadela de que fala o DN foi fulminada ao tocar num cabo telefónico que caiu e ficou em contacto com um cabo condutor de energia elétrica. Os bombeiros e a brigada da Companhia Gás e Eletricidade, alertados para a situação, foram chamados ao local e desligaram a corrente. Muitos acreditam que se pouparam vidas humanas.

O navio arfou no mar a borbulhar

Nos dias seguintes, era também conhecido o testemunho do comandante do "Manuel Vicente", o navio que navega no epicentro do sismo. O comandante Oliveira Manata estava nessa altura recolhido, a ler. Eram, 1:43 locais e percebeu que o navio se estava a comporta de forma estranha. Começou a arfar, uma expressão que na linguagem náutica significa um movimento parecido com o abrir e fechar da mão. "Embora construído em ferro, o barco tem uma certa elasticidade, mas naquela altura sentiu-se o esforço dele. Logo a seguir, deixou de arfar e começou a vibrar com muita força."

Vestiu o roupão, para ir ver o que se passava, ainda pensou que a embarcação tivesse perdido a hélice ou que uma das máquinas tivesse gripado e a outra estivesse a arrastar, mas o chefe de máquinas já tinha feito essa verificação. O barco era intensamente abalado.

"O barco vinha a navegar com vaga moderada. Na altura do abalo, a vaga desapareceu e via-se o mar, e um lado e de outro, borbulhar como a água de uma panela a ferver. Logo que parou a vibração, vieram duas vagas grandes; o navio subiu uma, desceu a outra e passou-a também. Depois tudo serenou", contou.

Não houve pânico a bordo. Os passageiros pensaram que o navio tinha encalhado e não ficaram muito alarmados, mas vieram para os corredores como estavam. "Houve uma pequena exposição de pijamas e vestidos de noite", contou o comandante.

Foi uma noite de susto. Mas os pijamas ficaram para a História.