Uma oração pelos mais ricos
Um tal Buffet, de quem se diz ser um dos mais ricos do mundo, explica em duas regras o segredo da sua fortuna: "a primeira regra é nunca perder dinheiro, a segunda regra é nunca esquecer a primeira". Sábias palavras as do velho investidor, mas capazes de azedar a conversa quando, por comparação, descemos à terra e pensamos na perda do poder de compra dos salários, enquanto os preços sobem, as contas mordem e os supermercados assustam.
O empobrecimento da maioria, imposto pela ambição de quem confunde contas com usura e exploração, simplifica a realidade, mas é aí que estamos. A pandemia antes e a espiral inflacionária depois estão a alargar o fosso entre ricos e pobres, já de si enorme. Uma medida do aprofundamento dessa desigualdade é o crescimento da fortuna dos multimilionários nos últimos dois anos: engordou a uma taxa de 2, 5 mil milhões de euros ao dia (nas taxas de câmbio atuais). Trocando por miúdos, um em cada 100 dos mais ricos ficou com 63% da nova riqueza gerada em todo o mundo. E Portugal não foge à regra: os 5% mais ricos têm nas suas mãos 42% de toda a riqueza nacional, o que nos coloca em quinto lugar entre os países mais desiguais da OCDE.
As crises económicas, a pandemia, a inflação e a guerra afetam-nos a todos, mas não por igual. Enquanto os salários perdem peso e capacidade de poder de compra, as grandes empresas aumentam lucros e a riqueza continua a concentrar-se nas mãos de muito poucos.
Para a maioria, a subida de preços alcança cotas inéditas e golpeia com mais força os rendimentos mais baixos. Para a mesma maioria, os fenómenos financeiros ou geopolíticos significam sempre apertar o cinto, e sabemos bem o que isso significa quando traduzido no cabaz de compras de produtos essenciais, desde logo a alimentação, ou no acesso a outros bens de consumo, a começar na energia e nos combustíveis.
Já para uma minoria incompreendida, os problemas são muito mais complexos. Em boa verdade, os ricos não são como nós: a começar, porque têm mais dinheiro e, logo, a infelicidade de serem obrigados a administrar somas enormes. Um bom exemplo foi-nos trazido nos últimos dias pela discreta presidente da Sonae, um grupo empresarial que fechou as contas do ano passado com lucros de 342 milhões de euros. A administradora da poderosa cadeia de supermercados admite que "esta crise é cega, mas estamos a fazer o que podemos", diz a mesma Claúdia Azevedo que, só no ano fiscal de 2021, recebeu 505 mil euros a título de remuneração fixa, além de dois prémios de 551 mil euros cada. Ou seja, um rendimento diário, repito diário, superior ao vencimento mensal bruto de três caixas do Continente. "A guerra no mercado [da distribuição] é feroz", e usa todos os subterfúgios de "mais promoções ou descontos em cartão" para conquistar quotas, admite a herdeira e empresária, adiantando que, para conter a pressão inflacionista, o seu grupo até "desceu as margens de lucro para os 2,7%".
Se Cláudia Azevedo "tivesse que procurar um culpado seria talvez o presidente da Rússia, ou a China ou a seca...", remata com candura. Temos, pois, de lhe agradecer a cândida compreensão para o que significa o agravamento de preços do carrinho de compras. E, no mesmo clamor, juntar às nossas orações também as empresas que veem crescer os custos das matérias-primas. Como vão aumentar nossos salários para manter o nosso poder de compra ao ritmo da inflação se, coitadas, já estão de tal forma sobrecarregadas com os problemas das cadeias de distribuição? Oremos.
Jornalista