Opinião
11 janeiro 2022 às 00h35

Uma campanha triste

Luís Castro Mendes

O verdadeiro entusiasmo dirige-se sempre a alguma coisa ideal e,
para dizer a verdade, de ordem puramente moral

Kant, O Conflito das Faculdades

Mais ou menos confinados em casa, obcecados com testes e vacinas, atentos a sintomas com um rigor hipocondríaco, alarmados e carentes de informação, encontramo-nos frente a uma triste e cinzenta campanha eleitoral, em que qualquer entusiasmo ou alegria coletiva são coartados por debates de 25 minutos, analisados depois durante horas por comentadores tudo menos independentes e por redes sociais que apenas nos confirmam nas nossas certezas. Uma campanha centrada, também por vontade dos jornalistas, em questões tão urgentes para o nosso futuro coletivo como a pena de prisão perpétua ou as vantagens da castração química. Uma campanha onde se esquecem os milhões subtraídos na evasão fiscal para se investir com fúria contra desgraçados que recebem um parco subsídio de inserção. Uma campanha defensiva, onde o debate que se quereria ouvir entre socialismo e liberalismo se perde nas tautologias e petições de princípio do dirigente da Iniciativa Liberal e acabamos por ouvir do líder do maior partido da oposição, de quem esperávamos maior bom senso centrista e social-democrata, a defesa simultânea das teses mais contraditórias, com o entusiasmo de quem joga aos heterónimos. Alguns socialistas, entretanto, que nunca gostaram da geringonça, vêm a terreiro defender que o Partido Socialista volte a andar com a direita ao colo, como nos tempos da "abstenção violenta", ou, invocando Mário Soares, sonham-se numa Alameda onde nunca estiveram, como se o tempo tivesse parado em 1975.

Na cerimónia do lançamento do primeiro volume das obras de Mário Soares, editadas pela Imprensa Nacional, José Manuel dos Santos recordou-nos que, já em 1993, o ainda Presidente Soares escreveu: "...desaparecida a União Soviética, destruído o projeto comunista à escala planetária e desfeito o espantalho do 'perigo vermelho', os comunistas hoje formam um partido como outro qualquer, sem haver razão para exclusões, desconfianças particulares ou discriminações, no espectro pluripartidário de uma sociedade aberta e livre, como a nossa."

Soares, ao contrário dos que hoje o invocam junto a uma mesa de pé-de-galo, nunca se enganou na definição do inimigo principal. Como Melo Antunes que, logo a seguir ao 25 de Novembro (que a nossa direita quer agora comemorar, enquanto não chega o tempo do 28 de Maio), defendeu com vigor e coragem a necessidade do Partido Comunista para a nossa democracia.

Na verdade, a esquerda e a direita existirão sempre. Podemos (e devemos) ter um centro-esquerda e um centro-direita e capacidade de diálogo democrático entre eles, mas os "centristas pragmáticos", fardados ou não, acabaram sempre por se revelar meros avatares da direita.

A melhor maneira de fazer, por um lado, crescer e prosperar a extrema-direita, por outro, dar força e apoio popular àquela esquerda à esquerda do PS que deu fim ao que restava da geringonça, será entregar o partido dos socialistas ao "beijo de morte" com a direita, a que as posições recentemente assumidas por alguns parecem almejar. Não desejo isso nem para o Partido Socialista nem para o meu país.

Uma campanha triste, mas uma campanha necessária, que deveria ser de esclarecimento de posições e de apresentação de alternativas na resolução dos problemas reais e não de repetição de mantras ideológicos, como num moinho de orações tibetano, ou de apuramento dos killer instincts dos contendores, para gozo e satisfação dos jornalistas. A isto estamos condenados pelas tecnologias do nosso tempo? Troquemos-lhes as voltas, porque o dia é uma criança, como nos cantava José Mário Branco. Para que voltemos a ver o entusiasmo na política.

Diplomata e escritor