Opinião
16 agosto 2021 às 22h25

Um estranho animal de duas cabeças e Álvaro de Campos

Luís Castro Mendes

Tratem da fama e do comer que amanhã é dos loucos de hoje.
Álvaro de Campos, Gazetilha

Como pode um sujeito que se dedica a fazer poemas exercer com um mínimo de seriedade qualquer função pública? E como pode um poeta prostituir-se ao poder nesse exercício, sem perder irreversivelmente a sua aura e a sua maldição? Este desprezo que merece alguém que se dedica à poesia ao mesmo tempo que exerce funções públicas levou-me a refletir sobre esta condição e a escrever até alguma coisa sobre o assunto.

No século passado, os surrealistas definiram bem os limites, ao decretar que "um embaixador de França não pode ser poeta", a propósito do pobre Claudel. Tudo faz sentido: alguém que ouse acumular tão diversas atividades será, aos olhos de quem se ocupa seriamente dos negócios públicos, visto como um pobre tolo ou um louco ("Só o parvo de um poeta / ou um louco...", como dizia Álvaro de Campos no poema em epígrafe); mas já para aqueles que animam, com os seus altos escritos e exemplos, a revolução total em que a palavra poética virá mudar as nossas vidas, para esses ele será um traidor ou um impostor face à poesia.

Álvaro de Campos, no poema que citei, contrapõe à memória nenhuma que nos deixaram os "Lloyd Georges da Babilónia" a imortalidade que conquistaram o "parvo dum poeta, ou um louco/que fazia filosofia/ ou um geómetra maduro" que viveram nesses tempos. Eu, por mim, estou certo de que a minha pobre fama não me irá sobreviver. Mas Campos lembra-nos que "amanhã é dos loucos de hoje" e que é mais seguro que fiquem na memória dos homens os que foram tratados no seu tempo de tolos, loucos ou hereges. Não é de mim que falo, é da fama dos poetas.

Irresponsáveis para as gentes do poder, lacaios para as gentes da mais virtuosa revolução poética, estas figuras dos poetas funcionários deslocam-se na zona cinzenta entre o horizonte das suas vidas e a permanente luta com o anjo que caracteriza a vida da poesia. Maurizio Serra, diplomata e escritor italiano, chamava-lhes "uns estranhos animais de duas cabeças"...

Mas a poesia é irredutível à vida. T.S. Eliot considerava útil a um poeta ter uma atividade distinta da vida literária (ele próprio, durante algum tempo, trabalhou num banco). Viver na e pela poesia, como um monge, parece não apenas pouco viável, mas também pouco sensato. A poesia não nos pede isso, porque a poesia não nos pede nem nos dá nada. Nós oferecemos à poesia o mais essencial da nossa experiência de vida, que tanto pode ser olhar um carrinho de mão vermelho (William Carlos Williams), como ouvir as vozes dos anjos (Rilke). E a poesia só tem para nos dar de volta a solidão da nossa própria insegurança.

A vida, lá fora, chama por nós com o aceno do Esteves sem metafísica. E nós, ao acenarmos de volta ("Adeus ó Esteves"), sabemos que o dono da tabacaria nos considera irrecuperáveis tolos, mas sabemos também que todos iremos morrer, que um dia não haverá mais tabacarias e que nem as graças dos donos das tabacarias nem as nossas pobres palavras em busca da poesia irão sobreviver ao tempo que nos foi dado viver.

O homem saiu da Tabacaria
(metendo troco na algibeira das calças?)
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino, o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem
esperança , e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, Tabacaria

Diplomata e escritor