Três tiros no porta-aviões
Na ausência de ipads e smartphones, que desconhecia poderem sequer vir a existir, o jogo da Batalha Naval reinava nos meus tempos da Escola Primária. Bastava uma folha quadriculada, com letras nas linhas e números nas colunas, um lápis para desenhar a flotilha, e depois era disparar na tentativa de afundar os navios do opositor. Esta semana recordei esses tempos, pois foram desferidos três golpes no porta-aviões da credibilidade de uma das instituições de referência do Estado: as Forças Armadas.
Comecemos pela indisciplina. Metade da guarnição do pequeno NRP Mondego, estacionado no Funchal, recusou-se a sair em missão de vigilância a um navio russo, invocando falta de condições de segurança da embarcação. Quem serviu nas Forças Armadas sabe que uma tomada de posição como esta é o fim da linha, só se justificando no quadro de uma objeção de natureza fundamental, em que valores supremos da nação ou da condição humana estejam em risco. Ao que foi apurado, apesar da existência de problemas de manutenção, o navio foi dado como apto para navegar. O comandante, que é quem toma a decisão final, deu ordem de saída. A partir daí, já não há espaço, nem tempo, para questionamentos. Um militar não é um empregado de secretaria; é alguém que tem um código de conduta singular e que foi treinado para atuar em condições adversas. O ato de indisciplina, ainda por cima tornado público, com mensagens WhatsApp a descrever as anomalias do equipamento militar, é intolerável, pelo custo reputacional que representa. Primeiro tiro no porta-aviões.
"[Gouveia e Melo] esteve bem na defesa da disciplina, que, como afirmou, é a cola que garante a coesão das Forças Armadas. Mas falhou redondamente no outro mandamento: a reserva. A instituição militar não pode, nem deve, expor os seus problemas na praça pública e em tempo real."
O tema do mau estado do navio e dos seus sistemas não é de somenos importância, mas reclama um outro ângulo de análise. Aos militares compete operarem e, se necessário, combaterem com o material de que dispõem. Aos políticos compete garantir condições de operacionalidade aceitáveis para que a missão não seja posta em causa. E aí há reparos a fazer. Aqui, como no resto do mundo, os recursos são escassos e prioritariamente canalizados para os problemas mais urgentes. Porém, urgência e importância nem sempre casam. Para dirimir esse desalinhamento, existe o conceito de prioritário. E, francamente, penso que o país continua a errar ao não considerar o mar como prioritário. Para Portugal, o mar é futuro e não imagino essa ambição sem uma Marinha Militar bem equipada, que, para além de cumprir a sua função específica, serve o país no estudo, na prevenção, na formação, no teste e na valorização dos recursos que dele poderemos obter. Lamentavelmente, o estado da frota da nossa Armada não serve esse propósito. Segundo tiro no porta-aviões.
Por fim, o almirante Gouveia e Melo. Esteve bem na defesa da disciplina, que, como afirmou, é a cola que garante a coesão das Forças Armadas. Mas falhou redondamente no outro mandamento: a reserva. A instituição militar não pode, nem deve, expor os seus problemas na praça pública e em tempo real. A discrição e a sobriedade são regras de ouro no exercício dos mais altos cargos da hierarquia militar. Ora, o chefe de Estado-Maior da Armada sabe bem que a reprimenda que deu à tripulação, do alto de um púlpito montado na coberta do navio, foi um ato intencionalmente público, que teria repercussão na comunicação social. Por isso, é legítima a suspeita de que o momento foi aproveitado para a sua promoção pessoal, no quadro duma mal disfarçada ambição política a caminho de Belém. Terceiro tiro no porta-aviões.
Professor catedrático