Transformar os modelos de cuidados de saúde - porquê?
No dia 1 de abril decorre no Auditório da Universidade de Évora a 2.ª Conferência dos Estados Gerais da Saúde - Transformar o SNS, por iniciativa da Fundação para a Saúde - SNS, em parceria com organizações cívicas, multiprofissionais e científicas. Tem como tema: Transformar os modelos de cuidados.
Os modelos de cuidados da maioria dos Sistemas de Saúde, incluindo o português, mantêm-se há décadas sem alterações relevantes. Estão demasiado centrados em hospitais e nos médicos, sobre quem recaem cada vez mais tarefas, muitas das quais sem serem trabalho médico, com burocracia e sistemas de informação exasperantes. Estão orientados sobretudo para episódios de doença aguda, quando o panorama das doenças, dos doentes e das necessidades de cuidados mudou drasticamente. Mudou quase tudo. Mudou a população, as suas circunstâncias e expectativas, o envelhecimento e o tipo de doenças mais prevalentes. Mudaram as determinantes socioculturais, económicas, comerciais e ambientais, que determinam muitas doenças. Mudaram as tecnologias e o conhecimento científico, cada vez mais complexo, perecível e evolutivo. Surgiram a inteligência artificial e a robótica.
Não quero dizer que o anterior modelo de cuidados foi errado. Ele permitiu que cada vez mais pessoas vivam mais anos. Os indicadores atuais de esperança de vida à nascença e aos 65 anos colocam Portugal em lugares cimeiros na Europa e no mundo. Porém, o mesmo não acontece com a qualidade de vida nesses anos. Hoje sobrevive-se com doenças e complicações que antes matariam a curto prazo. Muitas pessoas vivem com várias doenças crónicas e com doenças-complicações delas decorrentes. Os próprios cuidados de saúde causam problemas, o que se designa por iatrogenia. São cada vez mais comuns a multimorbilidade e a polimedicação. Cada vez mais pessoas vivem com dependência física e funcional, por vezes com fragilidade muito acentuada.
Hospitais e profissionais de saúde tornaram-se gotas de água, imprescindíveis, mas imensamente insuficientes no oceano das necessidades atuais em cuidados de saúde e sociais. Os cuidados de saúde, para serem eficazes, necessitam cada vez mais de equipas pluridisciplinares e multiprofissionais. Ao mesmo tempo, os primeiros e principais atores preventivos e cuidadores terão de ser os próprios cidadãos e famílias. Tal requer literacia e capacitação para aprenderem a proteger e a promover a sua saúde, mas também a lidar corretamente com as suas doenças e o seu plano de cuidados. Isto é, gestão pessoal de saúde e capacitação para autocuidados. Por outro lado, os vários tipos de cuidados profissionais devem passar a estar interligados, sob pena de fraca eficácia, desperdício de recursos e riscos para a segurança dos doentes. São necessários cuidados integrados, com continuidade no tempo e nos processos, longitudinais, e sempre centrados na singularidade e contexto de cada pessoa. Nos mais idosos, nos mais fragilizados e socioeconomicamente mais vulneráveis, as necessidades são frequentemente muito complexas, em que as componentes sociais e de saúde andam de mãos dadas. As situações ocorridas em alguns locais designados por "lares" ou "residências" não podem continuar a acontecer.
O Sistema de Saúde português, e não apenas o SNS, colapsará se não alterar radicalmente as suas centralidades estruturais, recombinar e interligar recursos, modificar as prioridades e estratégias de intervenção, colocar mais ênfase na promoção da saúde, na literacia e na capacitação das pessoas, das famílias, dos cuidadores e das comunidades. É necessário tecer e desenvolver redes de cuidados de proximidade em que as dimensões "saúde e cuidados socais" constituem faces da mesma moeda, com reforço dos cuidados no domicílio, o mais integrados que for possível. Redes de proximidade que integrem os diversos tipos de cuidados. A este respeito é justo destacar os projetos de "prescrição social" desenvolvidos por algumas Unidades de Saúde Familiar, a braços com populações muito carenciadas tanto de cuidados de saúde, como sociais.
Haverá que continuar a lançar alicerces para novos modelos de cuidados. A resposta local à pandemia de covid-19 provou que há engenho e arte em transformar adversidades em oportunidades. Agora, é prosseguir!
Serão estes os temas a abordar na Conferência de Évora, no próximo dia 1 de abril. O programa está disponível aqui. A inscrição é gratuita.
A participação pode ser presencial ou à distância neste endereço.
Médico.
Docente convidado da Nova ENSP e da Universidade de Évora.
Presidente da Fundação para a Saúde - SNS