Sexo, diferença e indiferença

De que falamos quando falamos de identidades sexuais? Convenhamos que, há muitos séculos, a pergunta está presente nas artes narrativas. Pensando apenas no século XX, lembremos a escrita de Virginia Woolf, Philip Roth ou Philippe Sollers... No cinema, os exemplos são muitos e muito inspiradores, da obra-prima Sylvia Scarlett (1935), de George Cukor (que não fará sentido "transpor" automaticamente para as convulsões do século XXI), até à mais recente epopeia biológica filmada por David Cronenberg.

Estas linhas não pretendem, nem de longe, nem de perto, resumir as componentes de tal história, sejam as de natureza sexual, como seria inevitável, social ou política. Recordo apenas uma dessas componentes que, em anos recentes, adquiriu uma inusitada força artística e simbólica. A saber: instalou-se um debate de muitos contrastes sobre os modos de representação das diferentes identidades sexuais. No cinema dos EUA, em particular, existe mesmo uma corrente de pensamento que defende uma compulsiva "duplicação" narrativa: qualquer identidade sexual deverá ser representada por alguém que se defina através de uma identidade semelhante.

Não creio que os pontos de vista individuais sejam, isoladamente, determinantes para refletirmos sobre o contexto em que tudo isto está a acontecer. Ao mesmo tempo, dada a complexidade das questões envolvidas, compreendo que o leitor possa perguntar a partir de que perspetiva estou a escrever. Esclareço, por isso, dois pontos.

Primeiro, observo a obrigação (narrativa e interpretativa) que atrás referi como uma desvalorização de um princípio que sempre julguei - eu e uma tradição de alguns milénios - essencial a qualquer forma de representação. Que princípio? O da valorização da capacidade de transfiguração do intérprete, não apenas como prova de um talento específico, mas razão visceral da arte que pratica. Exemplo: a composição de Tom Hanks no filme Filadélfia (1993) vale pela verdade dramática da personagem que representa, não dependendo de qualquer "coincidência" de identidade sexual entre ator e personagem.

Depois, a reiteração dessa obrigação instala no tecido social uma falácia ideológica que, para mim, equivale a um drástico empobrecimento da relação de cada um de nós, espectadores, com todas as formas narrativas que o espetáculo, seja ele qual for, possa adquirir. A personagem "confirmada" pela identidade sexual do intérprete existiria apenas como bandeira dessa identidade, mero avatar de um protesto de que, no limite, a singularidade humana foi rasurada. Consequências? Não apenas a desagregação do conceito de personagem e a mecanização "militante" do labor do ator/atriz, mas também uma reversão social da própria perceção do espetáculo.

Regressando ao exemplo de Filadélfia, deparamos mesmo com uma pergunta eminentemente política: o facto de o filme realizado por Jonathan Demme ter tido um efeito muito concreto, junto de milhões de espectadores de todo o mundo, na discussão e superação de preconceitos antihomossexuais (no contexto particular de eclosão da sida) é um facto que devemos desvalorizar, ou até ignorar, porque o intérprete da personagem central não é homossexual?

As minhas ideias são vulneráveis, habitadas por outras perguntas a que nem sempre saberei responder. Nas suas fragilidades e incertezas, o meu pensamento não pretende alimentar uma prática hoje dominante no espaço das redes a que alguém deu o nome de "sociais" - nome obsceno, já que, com frequência, apenas servem para alimentar, ou até glorificar, muitas formas de comportamento antissocial. Ou seja: não me quero enredar, nem enredar o leitor, numa lista de exemplos e contraexemplos, tendencialmente absurdos.

Acontece que tudo isto se baralha - no sentido em que se torna ainda mais complexo - com o facto de a discussão das identidades sexuais (de quem representa e quem é representado) não poder ignorar a existência de gravíssimos dramas laborais, não poucas vezes pondo em causa o inalienável direito ao trabalho de cada ser humano. O que nos remete para problemas que estão para lá dos assumidos limites deste texto, mas que, escusado será sublinhá-lo, importa resolver.

Resta saber como pode evoluir a avalanche de factos e interrogações inerente a toda esta conjuntura. Tal expectativa envolve aquele que, neste momento, será o elemento trágico de todo este processo - porque acredito que é um processo, quer dizer, uma dinâmica capaz de transfigurar modos de viver e pensar. Que elemento é esse? A formatação social da identidade sexual de cada um.

"O que é a identidade sexual? A pergunta, aparentemente simples, passou a existir enredada num sistema público de muitos conflitos."

Que formatação é essa? Consiste em agudizar a própria diferença (sexual, neste caso), a ponto de ela, e só ela, definir a existência de cada um enquanto elemento operante do coletivo social. Corremos o risco de caminhar para uma conjuntura de comunicação - a meu ver, de incomunicação - em que a identidade sexual de cada ser humano, seja ela qual for, funcionará como elemento prioritário (no limite mais simplista, como emblema) da relação social que cada um estabelece, ou pode estabelecer, com qualquer outro. Como viver e, sobretudo, viver melhor através da hipersexualização de todos os gestos de vida?

Bem sabemos - ou, se não sabemos, talvez devêssemos prestar um pouco mais de atenção - que há poderosíssimos fatores mediáticos que todos os dias contribuem para uma agressiva formatação da(s) sexualidade(s) e, sobretudo, das suas formas de representação. Exemplo? O Big Brother televisivo. É chocante verificar que a grosseira instrumentalização narrativa da sexualidade que há mais de duas décadas, todos os dias, várias horas por dia, acontece no Big Brother tenha como contraponto o silêncio de quase todos (incluindo membros das classes de professores e educadores), indiferentes à normalização de tão rasteiro antihumanismo.

Direito à diferença? Sim. Eis um princípio básico, mesmo não ignorando que, em alguns contextos, a expressão passou a ser também um instrumento mercantil, como acontece em alguma publicidade oportunista que preenche os nossos ecrãs e as nossas ruas (este é, aliás, outro domínio de violenta formatação social que tende a ser encarado como uma "natureza" inquestionável).

Direito à diferença - sim, sem dúvida. Resta saber qual o ponto de vista concetual que sustenta a enunciação de tal direito. Seremos capazes de evoluir para um sistema de relações em que a diferença possa ser serenamente reconhecida, tornando-se indiferente? Ou cada diferença passará a ser brandida como uma arma de arremesso contra as outras diferenças?

Jornalista

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