Quando a Justiça julga nos ecrãs, quem ganha é o extremismo

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O Manifesto dos 50 pela reforma da justiça não é apenas um apelo técnico ou corporativo. É um grito de alerta, profundamente político e cívico, que hoje se torna ainda mais atual e urgente. Não se trata apenas de melhorar a justiça — trata-se de salvar a democracia. Porque quando a justiça falha, o edifício democrático estremece e Portugal está a assistir a esse terramoto em direto.

Estamos a viver tempos perigosamente voláteis. A justiça portuguesa não tem servido com dignidade o Estado de Direito — pior, tem contribuído significativamente para a sua erosão. A justiça tornou-se um espetáculo. Em demasiadas ocasiões, deixou de ser nos tribunais que se julga — passou a ser nas redações e nos ecrãs. Deixou de ser com base em provas, para passar a ser com base em fugas seletivas de informação. A condenação já não é legal, é mediática. Já não é justa, é popular.

O resultado desta promiscuidade entre justiça e mediatismo é quase sempre previsível: reputações destruídas, vidas pessoais e políticas arrasadas e decisões judiciais que, quando finalmente chegam, já pouco interessam. O julgamento verdadeiro, afinal, já aconteceu — não nos tribunais, mas em direto, nos ecrãs de televisão, nas páginas dos jornais e nas redes sociais.

E porquê? Porque existe, desde sempre, um fascínio coletivo pela queda do outro, uma atração quase mórbida pela desgraça alheia. A história mostra-nos isso: dos Coliseus romanos, onde multidões aplaudiam a morte como espetáculo, à Inquisição, onde se punia publicamente em nome da moral. Hoje, o cenário mudou, mas a lógica mantém-se. Substituímos as arenas por estúdios de televisão e feeds de redes sociais — mas o prazer em assistir, em live, à desgraça alheia permanece.

Foi assim com Rui Rio, em 2023. Foi assim com António Costa, em 2024. Nenhum foi acusado. Nenhum foi julgado. Ambos foram, no entanto, arrastados pela lama mediática alimentada por investigações sob segredo de justiça. O caso que envolveu António Costa, ainda que nunca lhe tenha valido uma acusação, ditou a queda de um governo com maioria absoluta. Pouco tempo depois, o mesmo António Costa foi eleito Presidente do Conselho Europeu. E a justiça portuguesa, essa, permanece calada.

Em 2025, a história repetiu-se, agora com o Primeiro-Ministro Luís Montenegro. O caso Spinumviva, assente em suspeitas sobre uma empresa de consultoria ligada à sua família, precipitou a queda do seu governo após uma moção de confiança chumbada no Parlamento. Montenegro negou qualquer irregularidade, mas já era tarde. O dano político estava feito. A perceção pública de opacidade e de conflito ético foi suficiente para descredibilizar mais uma liderança.

Dois anos. Dois líderes de governo, de partidos diferentes. Dois processos mediáticos, nenhum julgamento, nenhuma condenação. No entanto, as consequências foram devastadoras. E o resultado? Simples. Uma sociedade descrente, desorientada, e mais de 20% dos votos nas eleições legislativas de maio de 2025 entregues ao Chega. Não por acaso. Era exatamente disto que a extrema-direita precisava: da implosão moral e institucional do centro político e da confiança pública.

E enquanto tudo isto acontece, o centro político continua paralisado, refém de um equívoco perigoso: a ideia de que o diálogo entre PS e AD fortalece os extremos. É falso. É precisamente a ausência de diálogo, de pontes, de soluções reais e de reformas estruturais que abre espaço ao populismo. Quando o centro não age, os extremos ocupam. E quando os partidos que têm governado Portugal se recusam a entender-se até em matérias essenciais, todos perdem. Perdem os partidos, perdem as pessoas, perde a democracia, perde o país.

Os portugueses não querem mais escândalos. Não querem mais justiceiros televisivos. Querem soluções para os seus problemas: saúde, habitação, educação, justiça célere, segurança, futuro. E essas soluções exigem reformas — corajosas, consistentes, eficazes — feitas com estabilidade política e diálogo institucional. Se PS e PSD/AD têm sido os principais pilares do regime democrático nas últimas décadas, então que assumam essa responsabilidade e encontrem convergência onde for necessário. No Parlamento, nas políticas públicas, nas reformas estruturais. A estabilidade que todos reclamam não se faz com discursos — faz-se com pontes.

O crescimento do populismo e da extrema-direita não é inevitável. É um sintoma. Um reflexo direto da falência das instituições em dar resposta à cidadania. A justiça, tal como está, alimenta esse ciclo vicioso. Julga na praça pública, em vez de julgar nos tribunais. Permite fugas seletivas, em vez de preservar o segredo de justiça. Gera ruído, em vez de confiança. Precisa de se reformar — urgentemente, profundamente, democraticamente.

O Manifesto dos 50 não é um capricho de juristas. É um apelo à sobrevivência da democracia. A justiça só serve ao Estado de Direito se for imparcial, célere, transparente e respeitadora da dignidade de todos — incluindo os que ocupam cargos públicos. A justiça que temos hoje não cumpre esse papel. E ao falhar, abre caminho a quem tudo quer destruir.

O combate ao populismo não se faz apenas com discursos inflamados. Faz-se com instituições credíveis, reformas corajosas, lideranças responsáveis e cidadania informada. Está nas mãos dos partidos. Está nas mãos da justiça. Está nas mãos de todos nós.

*subscritor do Manifesto dos 50 pela reforma na da Justiça'

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