Peça sacrificada
Deixem-me falar-vos da guerra civil em Lisboa. Eu, peã, me confesso. Estou a perder. Muito antes do advento das ciclovias e trotinetas, já era esta vossa criada um ser pedonal. Sempre gostei de andar a pé em Lisboa, em passeio ou em deslocação. Caminhar é de borla, ecológico e saudável. Vêem-se melhor as surpresas da cidade e, às vezes, também se poupa tempo e as chatices do carro, desde engarrafamentos a estacionamento. Certo é que a vida pedestre em Lisboa já não era fácil. Passeios estreitos (impossíveis para carrinhos de bebé, cadeiras de roda, etc.), desumanos para invisuais, sujos e com dejectos de animais (falta civismo e higiene urbana). A capital chega mesmo a ter estacionamento oficial para automóveis com rodas em cima da zona pedonal. De resto, há locais em que se anda na estrada ponto final. Adiante.
Embora tenha de usar o carro algumas vezes - seja para transportar os meus filhos em idade pré-escolar ou em trajectos para fora da cidade - ando sobretudo a pé, lidando com a soberba dos condutores que se assapam em zonas residenciais, não respeitam zebras, deixam os carros nos passeios, etc.... Não é por acaso que somos recordistas de atropelamentos em passadeiras. Adiante.
Quando as ciclovias e as trotinetas chegaram, inicialmente senti-me menos Quixote contra a ditadura do automóvel, feliz pela diversidade e por outra ideia de metrópole. Alegria efémera. Em breve, descobriria que bicicletas e trotinetas consideram ainda menos os peões do que os popós. Admito que o investimento de milhões em ciclovias (muitas mal desenhadas) - sem que a maioria dos passeios fosse alvo de qualquer melhoramento - foi um pouco ofensivo. Mas relevaria o deslumbre pela moda, posto que se trata de uma boa causa.
Quem hoje tece a mais leve crítica a estas mobilidades ou ainda precisa de usar carro, logo é apodado de troglodita. Mínimo. Quem apenas não gostar é porque não é cosmopolita, nem defensor do ambiente. Quem não tem condições para tal (a maioria dos que têm são privilegiados) é desprezado.
O que já é inaceitável é o facto da maioria dos ciclistas e quejandos não respeitarem limites de velocidade, não pararem nas passadeiras - sobretudo nas das ciclovias - ou rolarem em cima dos passeios. Já fui abalroada mais que uma vez e deixei de, nas zonas pedonais mais largas, permitir que os meus miúdos pequenos andem à vontade e sem mão dada, temendo (como sucede) o surgimento inopinado de um desses veículos. A polícia de trânsito apenas fiscaliza os carros?! Na avenida onde resido no centro de Lisboa, um dos passeios tem uma óptima ciclovia e o do lado oposto (bem mais estreito) é de peões. Pois todos os dias circulam do lado errado Giras e Bolts, perigando putos e velhotes. Sair do prédio passou a ser semelhante a atravessar a rua - antes de colocar um pé fora de casa há que olhar para ambos os lados... da calçada. Isto já para não falar dos montes de lata com rodinhas deixadas ao abandono, numa manifesta falta de urbanidade.
Contudo, quem hoje tece a mais leve crítica a estas mobilidades ou ainda precisa de usar carro, logo é apodado de troglodita. Mínimo. Quem apenas não gostar é porque não é cosmopolita, nem defensor do ambiente. Quem não tem condições para tal (a maioria dos que têm são privilegiados) é desprezado. Ah, e então os peões? Esqueçam. Nunca foram prioridade. Nem en passant.
Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia