Para lá da geringonça

A próxima direção do PSD será centrista e verdadeiramente social-democrata
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Os principais indicadores económicos não deixam margem para dúvidas: um crescimento económico anémico, um reduzidíssimo investimento público e privado, a taxa de poupança a níveis preocupantes, as exportações a decrescer e, claro, a dívida a aumentar. Desta forma, e não havendo perspetivas de a política europeia mudar de forma significativa nos próximos tempos, estamos condenados a um pântano que irá criando cada vez mais desalento, falta de horizonte e uma degradação da situação social que, inevitavelmente, acarretará problemas políticos.

No entanto, temos uma situação política estável e pacífica. O nosso sistema político--partidário não sofreu, nem parece em risco de sofrer, transformações relevantes, não há no horizonte forças populistas, os partidos não crentes no capitalismo e defensores de confrontações com a Europa estão calmíssimos e presos a uma solução que lhes limita a ação. E, dado também raro nos países que mais penaram e penam com a crise, os dois partidos centrais no quadro partidário mantêm a sua força relativa.

Importa perguntar, se a presente solução governativa não existisse poderíamos dizer tudo isso? Não, não podíamos. Concorde-se ou não com a maioria das medidas deste governo, critique-se ou não o cerne do acordo entre o PCP, o BE e o PS.

Em primeiro lugar, não me parece que existam dúvidas de que se o PS tivesse viabilizado um governo PSD-CDS, quer através de abstenções violentas quer estando no executivo, já estaria em curso a pasokização dos socialistas. A oposição estaria concentrada no BE e no PCP, que, por esta altura, teriam já uma enorme relevância e crescido nas intenções de voto. E, com certeza, com um discurso muito mais violento em relação aos compromissos europeus. O facto é que estes dois partidos sacrificaram muitas mais das suas bandeiras do que o PS. Bem sei que não é esse o discurso da oposição, mas o problema desse discurso, como outros aspetos, é o de não casar com a realidade. No fundo, a questão vital é: este governo pôs em causa os compromissos europeus - apesar de um salutar não comer e calar tudo? Claro que não. Não era a narrativa do BE e do PCP confrontativa com a Europa ? Claro que sim. Assim sendo... Trazer estes dois partidos para próximo da governação não só os obrigou a uma, digamos, responsabilização como a um discurso bem menos radical - é ver Catarina Martins a recusar-se a traçar linhas vermelhas.

Aliás, não é por nenhum tipo de gosto especial por esta solução governativa ou pela ideologia dos partidos que a compõem que o Presidente da República a tem ajudado. Abrir o leque de possibilidades de acordos para a governação num sistema constitucional não desenhado para que se obtenham maiorias dum só partido, moderar partidos radicais e garantir que os partidos do centro não se diluam são aspetos que o garante pelo bom funcionamento das instituições e pelo equilíbrio do sistema não pode deixar de levar em conta.

Há quem pense que se perdeu o centro, que esta divisão marcante entre direita e esquerda, que se afirma ser uma das consequências dos acordos de governação, perdurará por muito tempo. No fundo, defende-se que os acordos à esquerda fizeram que o PSD se acantonasse à direita. Nem uma coisa nem outra são verdade. Primeiro, a governação está longe de se afastar duma matriz social-democrata, há pouco tempo e em termos europeus pareceria absolutamente comum, as companhias do PS não o afastaram, nos temas essenciais, dessa linha. Em segundo, foi o PSD que, como nunca, se encostou à direita.

Ora, nem o PS abandonou o centro nem o PSD está, muito longe disso, definitivamente afastado do centro político que sempre foi o seu lugar. O facto é que a base social de apoio do PSD não partilha dos valores ideológicos e programáticos da atual direção. Não houve uma súbita viragem à direita do eleitorado do PSD. Basta conhecê-lo muito vagamente para se saber que é um defensor do Estado social, da escola pública, de um Serviço Nacional de Saúde forte e desconfiado de muitas privatizações feitas, só para dar alguns exemplos. O PSD nunca foi um partido de direita como, por exemplo, o PP espanhol. Foi flutuando entre o centro-esquerda e o centro-direita, conforme o líder. Para um pragmatismo centrista com Cavaco, para o centro-direita com Durão, para o centro com Santana, para o centro-esquerda (sim, não há engano) com Manuela Ferreira Leite. Só Passos Coelho quebrou as margens em que o PSD foi navegando ao longo da sua história. Não é difícil de prever que a próxima direção do PSD será centrista e verdadeiramente social-democrata. É que só esse caminho o fará regressar ao poder. Mudem as circunstâncias complicadas em que vivemos e os acordos ao centro voltarão.

Repito, não se pretende avaliar a governação, mas o que a solução ajudou a criar num quadro mais amplo e que ultrapasse a conjuntura. O facto é que a gerigonça salvou o PS e em larguíssima medida a saúde do sistema partidário. No fundo, foi preciso mudar alguma coisa para que no futuro tudo continue na mesma. Só que desta feita ficar na mesma é uma boa notícia.

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