Uma Geringonça em limpezas de Primavera

Confesso que não sou grande adepto de teorias da conspiração, mas acompanhem-me por aqui nalgumas linhas. E se a crise dos oito dias não passou, afinal, de um belo pretexto para arrumar a casa? E se tudo não passou de apenas mais um ponto não escrito nas posições conjuntas do PS com os seus parceiros à esquerda?

Se com o Bloco isso parece pouco provável - mas, temos aprendido com a Geringonça que a política portuguesa é construída, cada vez mais, por momentos improváveis -, com o PCP a teoria torna-se quase verificável. O mal disfarçado desconforto entre Mário Nogueira e a direção comunista foi um sinal. Terá existido coordenação prévia à votação? Não me parece, até porque não era necessária - a posição de PCP e Bloco era francamente previsível -, mas que houve uma gestão perfeitamente tranquila de eventuais tensões, isso ficou claro.

Na correlação de forças e de papéis entre os parceiros, o que se passou na última semana foi quase como uma profunda limpeza de primavera. Limpou-se o pó, lavaram-se e arrumaram-se na arrecadação os compromissos cumpridos e de caminho fez-se regressar o PCP, e o Bloco por arrasto, à posição de exclusividade na defesa dos direitos dos trabalhadores, neste caso dos funcionários públicos. Convenhamos que é algo que dá jeito em tempos de campanha.

É cedo para confirmar algo que temos ouvido e lido com insistência nos últimos dias - que a Geringonça está morta e que será impossível uma versão 2.0. Mas, daqui até ao final da sessão legislativa, ainda que com o país político em modo de campanha, há temas para animar o corredor do parlamento onde estão arrumados PS, PCP e Bloco: lei de bases da Saúde; lei de bases da habitação e, bem menos provável, as alterações à legislação laboral. Sabemos bem como a Geringonça é movida a diálogo, oposição e conciliação. É uma fórmula à qual não estávamos habituados e não tenho como certo que nos tenhamos habituado nestes últimos quase quatro anos.

Deixemos a esquerda e olhemos a direita na ressaca da crise. Será que podemos reduzir a crise a erros e problemas de comunicação? Também, mas não só. Já agora, também não me parece que circunscrever o que se passou nos oito dias da crise a um golpe de baixa política, a uma jogada tática seja um bom caminho para PSD e CDS. Bem espremido, aliás, reduzir tudo a um jogo pode acabar por reforçar o argumento de que PSD e CDS desprezam o rigor das contas públicas.

O mais claro sinal das dificuldades do centro direita em lidar com todo este assunto foi a mudança de discurso no PSD. Rui Rio parece ter-se remetido a uma campanha de caráter contra o PM. Não há grandes ganhos com essa estratégia, nem para o PSD e muito menos para o país.

Rio, que luta desde a primeira hora, dentro e fora do partido, para afirmar uma linha programática para o seu partido, um discurso que lhe garantia diferenciação em relação ao PS e ao CDS, parece querer entrar na campanha para as legislativas armado de artilharia pesada, mas inconsequente. Um líder encurralado na avaliação de caráter do principal adversário, já foi testado, não vai longe. Se for necessário um teste do algodão para avaliar os efeitos desta crise de oito dias, esta recém-nascida agressividade de Rui Rio nas críticas ao caráter de António Costa dá-nos a medida exata desse impacto na oposição.

Outro teste foi a intervenção do líder parlamentar do PSD no debate quinzenal desta tarde. Qual cobrador do fraque, Fernando Negrão gastou o tempo de interpelação ao Primeiro-ministro a pedir-lhe contas de dívidas do Estado, cada uma rematada com a frase "Chama a isto boa gestão das contas públicas?" Demasiado óbvio e não muito eficaz, já que muitos dos tiros falharam o alvo, questionando o executivo por dívidas que, afinal, já estavam pagas.

Por último, até Marcelo Rebelo de Sousa, com o seu profundo e inédito silêncio quebrado já nesta segunda-feira para dizer o óbvio - que uma intervenção de Belém o teria "limitado numa futura decisão e no seu espaço de liberdade" -, parece ter ganho com esta ameaça de crise. Subitamente, quem sempre criticou os excessos comentadeiros do Presidente acabou a criticar o seu silêncio.

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