Um complicador desnecessário
É sempre interessante e ligeiramente assustador ver a máquina a funcionar. O complicómetro nacional ligou-se no rescaldo do incêndio de Pedrógão e reforçou-se com as mortes de outubro. Onde estamos agora que a primavera já entrou e que temos a "época de incêndios" quase à porta? Arrisco dizer que estaremos mais ou menos no mesmo ponto onde estávamos no ano passado por esta altura, sendo que caminhamos para o verão vestindo o conforto de uma longa lista de boas intenções.
Soubemos há dias que o Estado fechou o ano de 2017 com um défice das contas públicas ali a namorar 1%. Um resultado histórico, uma medalha na lapela de quem está primeiro-ministro ou ministro das Finanças. Ao mesmo tempo que nos vão servindo estas boas notícias, temos sabido da lentidão - é apenas um exemplo - do concurso para aluguer de meios aéreos (helicópteros e aviões de combate aos incêndios). Os prazos foram escorregando, dizem-nos, mas vai estar tudo pronto a tempo.
A negociação é dura e o Estado um negociador cada vez mais enfraquecido. A cada semana que passa sem acordo, a urgência entrega mais um pedaço de poder nas mãos dos fornecedores. Não duvido que tudo tenha sido feito de acordo com as regras da contração pública, dos concursos públicos internacionais, mas a questão é precisamente se neste caso não teria sido possível ao Estado funcionar num outro registo. O outro assunto é saber afinal para que serve atingir um défice de 1%. E não estou a falar do óbvio objetivo de redução da dívida ou da sanidade das contas públicas...
Em junho e outubro do ano passado, o choque das mortes tornou evidente o falhanço do Estado. Pois o próprio Estado demorou longos meses a chegar a essa mesma conclusão. No processo, produziram-se extensos relatórios e foram anunciadas mudanças estruturais. Na Proteção Civil, na gestão dos meios aéreos, na rede SIRESP, no recurso às Forças Armadas, etc. Hoje, dia 25 de março, quanto desse trabalho está pronto?
Falemos apenas da Proteção Civil. O ministro da Administração Interna conta ter pronta, até ao final deste mês, a nova lei orgânica da Autoridade Nacional de Proteção, mas ainda ontem garantia que ela, a lei, "não é para este ano, é fundamentalmente para o futuro". Mais, acrescentou que a lei "não vai resolver nenhum incêndio deste ano". Dias antes da sessão governamental e presidencial de limpeza de floresta, Eduardo Cabrita tinha deixado, a propósito do mesmo assunto, uma outra garantia. A de que nenhuma alteração na estrutura seria feita até ao verão. Menos mal. Não duvido que a alteração da lei orgânica da ANPC, com tudo o que se sabe há meses sobre o que de muito errado se passou no combate aos incêndios de junho e outubro, seja uma tarefa hercúlea, mas... não podiam ter andado mais depressa? Há diagnóstico, mas o remédio só chega a tempo da "época de incêndios" de 2019?! Será que vamos passar pelo mesmo triste espetáculo de descoordenação daqui por uns meses?
Por fim, a prova de que o complicómetro não é um exclusivo do Estado tem sido a atitude das associações de bombeiros. Acharam por bem que esta era a oportunidade ideal para conseguirem alguns ganhos de causa e há mesmo algumas ameaças de inação ou greve de zelo se e quando chegarem os incêndios. Tudo bastante lamentável e evitável.