O terrorista integrado

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1 Foi em tom de surpresa que os meios de comunicação nos deram a notícia: os jovens suspeitos do ataque terrorista em Barcelona estariam bem integrados na sociedade espanhola, tendo a sua radicalização ocorrido apenas nos últimos meses. Surpresa, porque era assim contrariada a explicação comum que relaciona com demasiada facilidade terrorismo, imigração e contrastes culturais. Surpresa, porque é afinal mais difícil explicar o terrorismo como uma guerra entre "eles" e "nós". Surpresa, porque no debate público, muitas vezes excessivamente simplificado, tem dado jeito pensar que só "eles", e nunca "nós", poderiam ser inumanos o suficiente para matar friamente civis comuns.

2 No entanto, na Europa, o terrorismo praticado por cidadãos brancos, europeus de enésima geração, tem uma história longa. Uma história intelectual e prática, de pensamento e ação, mais recente do que nos queremos lembrar. Com protagonistas radicalizados, como agora se diz, de todas as cores: neofascistas italianos, esquerdistas alemães, nacionalistas irlandeses ou ingleses do Ulster. Na altura, como agora, com ligações em rede entre si e apoiados por Estados que usaram o terrorismo como recurso político. Com níveis de violência e de mortandade igualmente graves e chocantes. Como o atentado à bomba em dois pubs de Birmingham, em novembro de 1974, atribuído ao IRA Provisório, que matou 21 pessoas e feriu 182 outras. Ou a bomba na estação ferroviária de Bolonha, em agosto de 1980, atribuída aos neofascistas italianos, que matou 85 pessoas e feriu mais de 200.

3 Em relação ao terrorismo europeu da segunda metade do século XX não houve dúvidas: foi definido, sempre, como fenómeno político que requeria respostas políticas, nacionais e internacionais. Porquê a relutância atual, a dificuldade, em definir o terrorismo islâmico da mesma forma? Porquê a insistência em fazer uma leitura cultural de um fenómeno que é, agora como no passado, sobretudo político? Ainda que com diferenças em relação aos terrorismos do passado, o terrorismo atual necessita de ser analisado politicamente e de ter respostas políticas, mesmo que específicas.

4 Contudo, basta ser um pouco menos eurocêntrico para perceber que este terrorismo, como todos os terrorismos, é um fenómeno político, não uma guerra de civilizações ou de culturas inconciliáveis entre si. Basta estar atento às notícias, muitas vezes curtas e breves, sobre atentados dos mesmos terroristas, com violência ainda maior, nas terras "deles", em África ou na Ásia. O ano de 2016 foi particularmente mortífero em França, com 26 atentados, o mais trágico em Nice, que, no seu conjunto, provocaram 95 mortos e 470 feridos. No mesmo ano morreram, em atentados atribuídos maioritariamente ao terrorismo islâmico, mais de 2000 pessoas na Nigéria e mais de mil no Paquistão. "Eles" contra "nós"? Não, eles contra eles, nós contra nós. Sempre terroristas contra Estados e cidadãos, em todo o mundo, com uma agenda política que pretendem impor pelo medo e pela força.

5 É certo que a partir do momento em que se coloca o terrorismo onde ele deve ser colocado, isto é, no campo da política, começam as perguntas incómodas. Desde logo sobre as relações perigosas entre o chamado terrorismo islâmico e ideologias religiosas de estado, como o salafismo na Arábia Saudita. A mesma Arábia Saudita onde começa a promoção deste terrorismo de hoje. A mesma Arábia Saudita que teve honras de primeira visita de Estado por Donald Trump. O que suscita novas perguntas, agora sobre a aparente esquizofrenia ocidental que com uma mão combate o terrorismo e com a outra protege e faz negócios com o berço do mesmo.

6 Amin Maalouf perguntava-se em tempos por que razão nos questionamos com tanta frequência sobre o que as religiões fazem à política e tão pouco sobre o que faz a política às religiões. O radicalismo islâmico é, como todos os fundamentalismos, um produto político que faz uma leitura da religião para legitimar uma visão totalitária radical do mundo profano. Deve ser politicamente combatido sem equívocos e com todos os recursos que contra ele pudermos mobilizar. Em todo o lado. Onde opera e onde se constitui. Como grupo político localizado, com protagonistas identificáveis e lideranças conhecidas. Não como coletividade religiosa difusa.

7 Em tempos negros de nova popularidade dos nacionalismos populistas de direita, como os que vivemos atualmente, convém relembrar que estes movimentos necessitam, para se afirmarem, de um bode expiatório. A imigração e os muçulmanos são, num cenário de terrorismo, os candidatos óbvios ao papel de culpados. Aceitar a explicação fácil e simplista que relaciona terrorismo, imigração e contrastes culturais fragiliza a luta contra o terrorismo e presta um favor enorme aos populismos nacionalistas. Recusar o centramento da definição do terrorismo islâmico naquilo que ele é, um movimento político promotor de uma identidade assassina, como muitos outros terrorismos do passado, alimenta não apenas uma mas duas ameaças: o terrorismo e o populismo nacionalista.

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