23 setembro 2017 às 00h00

Campeões enfermiços

João César das Neves

Portugal vive um período de sucesso. Ganhámos o Campeonato Europeu de futebol, o Festival da Canção e estamos na moda, suscitando interesse desde o Papa Francisco à Madonna e iPhone. Entretanto, a economia cresce, o desemprego baixa e até saímos do lixo das agências de rating. Que mais se pode pedir?

Porque insistem então tantos economistas num tom negativo, fazendo avisos e previsões sinistras, desmanchando o prazer destes triunfos? Explicação frequente é os tais especialistas, enfeudados à direita, resmungarem por meras opções ideológicas. Isso, se for verdade, invalida o que dizem, pois opções doutrinais são pessoais e subjectivas, não merecendo interesse. Assim, considerando oportunismo partidário os tais avisos e previsões, ficamos até dispensados de sequer considerar o conteúdo dos argumentos apresentados. Isso é repousante, mas alimenta uma complacência perigosa. Foi precisamente o que aconteceu há dez anos: em 2007, muitos alertas de economistas foram desprezados como pessimismo liberal. Depois, quando caímos na crise, ninguém se lembrou das advertências e até se condenaram os mesmos economistas por não terem impedido o desastre.

Se ainda está a ler este texto é porque acredita numa explicação alternativa: existem razões válidas de preocupação que, sob os inegáveis benefícios dos últimos meses, continuam a justificar forte apreensão. Há cerca de um ano o nosso país estava à beira de novo colapso financeiro. Desde então, uma conjuntura externa favorável e opções políticas internas permitiram uma trajectória que evitou a catástrofe e gerou esta situação auspiciosa. Mas o alívio de última hora não resolveu os nossos graves problemas estruturais. É compreensível um sentimento de libertação, mas confundi-lo com a cura gera condições para recaída pior.

Primeiro, a actual dinâmica económica é realmente bastante fraca. Ela só impressiona por vir na sequência de enorme crise, mas em qualquer outra época estes resultados seriam medíocres. Temos o menor crescimento de todas as recuperações dos últimos 50 anos. A actual taxa de desemprego de 8,8% parece baixa, comparada com os 17,5% de 2013, mas é a mais elevada da história de Portugal, exceptuando o período desde 2009, e 150% superior à média do desemprego dos 20 anos antes de 2008. Também o rating da dívida pública, mesmo após a melhoria recente e as que se esperam, permanecerá muito abaixo de tudo o que tivemos até 2011. Em termos relativos, no curto prazo, há pois razões para festejos, mas objectivamente ninguém pode dizer que está tudo bem.

Até porque, apesar do crescimento, subsistem os sinais de alerta mais aterradores. Antes de tudo, a situação internacional mantém uma condição periclitante. Não só persistem ameaças sérias, mas os bancos centrais há anos que injectam liquidez a ritmo frenético, sem par na história. Nós somos dos mais dependentes deste quadro aberrante, pois é só graças a essa política do BCE que a nossa dívida pública é colocada. Permanecemos na unidade de cuidados intensivos do euro, ligados à máquina da diálise monetária.

Por outro lado, o problema financeiro interno mantém-se esmagador. As dívidas pública e privada começam a descer, mas mantêm-se entre as maiores do mundo. O mesmo se diga da outra face do problema, o crédito malparado que envenena a banca. Em todos estes aspectos estamos aliviados pelas melhorias recentes, mas ainda muito mal, o que tem consequências concretas. Por exemplo, é compreensível nestas condições que a taxa de poupança das famílias esteja em mínimos históricos e o crédito às empresas continue a cair desde 2011. A actividade bancária, que dá sinais de reanimação, tem-se centrado quase em exclusivo nos empréstimos ao consumo e habitação, não à geração de riqueza. O investimento privado animou desde 2013, mas parte de uma base tão baixa que pouco mais tem feito do que repor a depreciação da operação, quase sem aumentar capacidade produtiva.

Além disso, o aparente clima de normalidade começa a alimentar comportamentos desadequados à doença que permanece. A produtividade laboral cai desde meados do ano passado. Com as remunerações a acelerar, os custos de trabalho por unidade produzida aumentam, perdendo competitividade a uma taxa que, em meados deste ano, já ultrapassa os principais parceiros. Regressámos aos comportamentos que nos trouxeram à última crise.

Este é o busílis da questão. Portugal teve muita sorte nestes meses, evitando o desastre e desanuviando a situação. Mas não tem aproveitado o alívio para colmatar falhas, reformar estruturas. A economia cresce, mas por inércia e à boleia do exterior, com pouca dinâmica própria. O défice público desce, mas sem correcções de fundo que alterem a trajectória da despesa pública. Na ânsia de distribuir os magros ganhos da conjuntura, estamos a desperdiçar esta oportunidade, repetindo velhos erros e inventando novos. Assim, o período de sucesso acabará muito mal.