Dilemas do meu povo

Tenho de resistir à tentação de escrever sobre o Mundial de futebol nesta crónica primeira, ainda que seja verdade que existiram muitas situações a merecer comentário, para além daquele terceiro golo do Ronaldo contra Espanha que está ainda a emocionar. Não é que fosse despropositado meter um ou outro palpite sobre o que está-se passando na Rússia, afinal das contas todas as conversas, desde as matinais nas caminhadas na Lajinha, até às brabas discussões no botequim Boca de Tubarão na Rua da Praia, passando pelas mais civilizadas, ainda que gritadas, à hora do almoço na Rua de Lisboa, estão girando à volta desse magno assunto, e não poucas provisões de cerveja estão-se alegremente esgotando neste festivo mês do desporto supremo.

Porém, não posso ceder a essa provocação, pelo menos por enquanto. É que tenho uma responsabilidade: dizer quem sou e ao que aqui venho. O convite foi para escrever sobre o que quiser, mas é óbvio que falarei sobretudo das minhas ilhas, afinal das contas sou tacitamente designado embaixador com passaporte diplomático, e isso obriga a um cuidado de que estaria dispensado enquanto simples cidadão comum. Assim, evitarei também os chamados "temas fraturantes". Isto é, para dar Cabo Verde a conhecer não precisarei falar da nossa ambiguidade política, divididos como nos encontramos entre a mãe África e a Europa madrasta, tão depressa gritamos CEDEAO como invocamos a genialidade da parceria europeia; também não falarei da nossa indecisão na assunção do crioulo e do português como línguas da nação cabo-verdiana. São todas matérias que, diria o conselheiro Acácio, inspiram grandes paixões. Há tempos fui extremamente castigado por alguns dos meus patrícios por ter defendido um mais aprofundado ensino da língua portuguesa em Cabo Verde. Numa entrevista aqui em Lisboa, permiti-me dizer que apenas com o crioulo como língua não iremos longe. Foi um deus-nos-acuda! Puseram-me de curtas e compridas, sobretudo por meio desse novo instrumento de comunicação que é o Facebook. Mas não estranhei e suportei tudo com estoicismo, parafraseando aquele dirigente do PS, Quem se mete com Cabo Verde, leva! Unicamente lhes chamei a atenção: usam a língua portuguesa para me atacar porque defendo o ensino da língua portuguesa em Cabo Verde!

Mas é impossível ignorar: desde sempre Cabo Verde se encontra dividido entre Europa e África, entre decidir se somos africanos que se europeizaram ou europeus que se africanizaram. Quando no tempo da rainha Maria I se deu conta de que as ilhas de Sotavento estavam demasiado negras, contrariando o propósito inicial de um povoamento próximo da Madeira e dos Açores, tocou-se a rebate no sentido de povoar com o maior número possível de brancos a zona de Barlavento. Inutilmente, porém, à partida as ilhas não se mostravam atrativas para a colonização, e acabariam ficando em pior estado depois da instalação da Companhia de Grão-Pará e Maranhão que teve a habilidade de assenhorear-se de tudo que significava algo parecido com economia nativa, incluindo até os ovos das galinhas. Assim desses brancos para Barlavento ficou-nos apenas o sonho da Europa.

Escritor cabo-verdiano, Prémio Camões 2018.

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