A indecente manipulação das imagens
É como as anedotas. Vocês sabem, é possível brincarmos com tudo, mas não com todos - até se pode contar piadas sobre campos de concentração... mas não se há um nazi por perto. Emmanuel Macron deve ter pensado que podia ter todo o tipo de gestos. Mas aprendeu nesta semana que deveria abster-se de ter gestos íntimos com Donald Trump.
Macron é capaz de posar tão bem de firme como de encantador. O presidente francês tem a boa figura e as convicções que o fazem ficar bem, com qualquer das variáveis, uma ou outra. Dizem alguns analistas que uma das razões de ter chegado ao Eliseu foi por, entre as duas voltas das presidenciais, ter ousado defrontar grevistas coléricos. Cercado entre operários da Whirlpool que protestavam por a sua empresa ser deslocalizada para a Polónia, Macron disse a um: "Não me trate por tu, porque não lhe faço o mesmo." Até lá era o menino dos gabinetes alcatifados do banco Rothschild, mas com essa imagem, essa voz e esse tom à porta da fábrica ocupada e transmitidos pela televisão, sob o escrutínio dos franceses que ainda andavam a tentar saber quem era aquele jovem ovni da política, ele foi catalogado como duro. Quanto a ser gentil, sempre bastou o seu ar de galã frágil - como um herói de filme de François Truffaut, um Antoine Doinel reconvertido na política.
No seu primeiro encontro, em maio do ano passado, com o também recente presidente americano, Macron ganhou por KO. Agarrou no ponto fraco de Trump - as mãozinhas pequenas que até tinham sido assunto da campanha americana. Na Casa Branca, sentados em cadeirões, em frente às câmaras, quando o americano lhe estendeu o bacalhau fugidio do costume, o francês firmou a mão e levou o outro a um esgar de desconforto que não escapou ao mundo. Foi só uma derrota que o presidente do país da imagem pública e dos dentes perfeitos não esqueceu. Até poder resgatar-se, nesta semana.
Aconteceu na visita de Emmanuel Macron à América. Ele trazia um discurso fisgado e esse era - já lá vamos aos pormenores - o de cimentar a sua liderança na Europa, agora que a sua parceira e aliada já não é a poderosa que Angela Merkel foi. Recebeu-o Donald Trump, homem de televisão e americano dos efeitos especiais. Uma coisa foi o francês tê-lo apanhado desprevenido, há um ano, outra seria deixar que o desconchavo se repetisse. Quem teve quem lhe organizasse as eleições, investindo cirurgicamente nos condados onde os dados fornecidos pelo Facebook diziam que se devia inundar com anúncios eleitorais eficazes, pôde apostar desta vez num personal trainer que lhe indicou onde amesquinhar o francezinho. Se a discursar bem Trump ainda não aprendeu, a gestualizar ele mostrou ser bom e rápido aluno.
Então, as conversações de 23 e 25 de abril, durante a visita de Macron a Washington, saldaram-se por um Waterloo gestual. O pequeno Napoleão foi derrotado por um improvável duque de Wellington de melena alourada. Trump caprichou e insistiu no capricho. E Macron convencido de que tinha arrumado o outro de vez com o aperto firme de mão, no ano passado, aprendeu que há gestos que não se podem ter com Trump. Sobretudo quando este já não está desprevenido.
Seguem-se três cenas, todas elas daquelas que levam direito a Santa Helena. Na Casa Branca, com as mãos descaídas e cruzadas frente ao casaco, com o sorriso que já não podia ser de vencedor, Macron deixou que Trump lhe limpasse uma hipotética caspa da lapela e, pior, deixou que o sorriso permanecesse beato. Entre eles, um quadro de George Washington, o mesmo do pai fundador que aparece nas notas de dólar, prevenia. Reparem, Washington nunca mostra os dentes porque os tinha em madeira, os odontologistas ainda não tinham sido inventados no seu tempo, mas o ar austero que aparece naquela foto também era para avisar o amigo francês, do grupo dos presidentes decentes, contra o seu sucessor. Este, grosseiro, sabendo o outro fragilizado, lançou aos jornalistas: "Ele deve ficar perfeito", e sacudiu um pouco mais a lapela do convidado...
Com ambos de pé, Trump deixa o seu microfone, aproxima-se de Macron, cruza com ele as mãos direitas, inclina-se e encosta a sua à cabeça dele. Fotos, filmes. A diferença de alturas sublinha o poder do americano. Finalmente, a imagem mais cruel, à saída da Casa Branca, Trump, apesar de dono da casa, está um bom passo à frente do hóspede. Deixa a mão esquerda para trás, que Macron imprudentemente agarra. E vai arrastado. Em filme, parece a debandada final dos franceses em Waterloo, sem um Cambronne que ponha cobro ao insulto; em foto, é um garoto que o pai leva à escola... As imagens são todas desastrosas para o presidente francês, sobretudo porque a contracorrente do que antes ele demonstrara. O ar glorioso de Trump não escondia, nem fingia que tentava esconder, que a vingança estava consumada.
No dia seguinte, Emmanuel Macron foi ao Congresso. Falar. A imagem, essa, tinha sido lamentavelmente destroçada antes. Sem ela, pior, com ela nas ruas da amargura, restavam-lhe as palavras. Num editorial, o jornal Le Monde fez o rol do que o presidente francês defendeu, em contraponto da nova política americana. A alternativa dos valores europeus, ao mundo fraturado que Trump quer; o comércio aberto contra o protecionismo; os valores progressistas contra o fascínio do poder forte; os acordos de Paris sobre o clima contra a recusa deles. A voz de Macron foi clara e forte. Mas já uma e outra e outra imagem de Macron faziam este valer menos do que mil palavras.