Agora é connosco
É estranho. Acreditava que todos tínhamos isto por certo. Acreditava, sobretudo, para mim, que tinha isto arrumado, pacífico: Soares estava por dias, semanas. Tinha até já escrito o meu obrigada, a minha elegia, aqui, há duas crónicas; tinha já, pensava, sondado o meu coração e percebido o lugar que ele ocupava, a forma como me conquistou ao longo do tempo até se constituir numa espécie de pai metafórico - o homem que esteve sempre onde e quando foi preciso para garantir que Portugal seria uma democracia e que eu, com 10 anos no 25 de Abril, cresceria numa.
Mas no sábado, quando vi o tuite de Ricardo Costa, diretor do Expresso, a dar a notícia, às 15.41, foi como se nunca tivesse pensado no depois de Soares; como se fosse surpresa: e agora? Percebi, a seguir, que muitos dos meus amigos tinham reagido assim: lavados em lágrimas, num desgosto súbito, irreprimível, que não vimos chegar. Porquê? O que é que sucedeu no sábado, de repente, que não tínhamos previsto? Donde vinha aquela dor?
Como eu, essas pessoas são crianças de abril; como eu, viveram a quase totalidade da sua vida adulta sob a protetora, calorosa e incansável tutela deste homem. Como eu, sentiram-se órfãs - foi a primeira coisa que escrevi, naquele momento, no Facebook, e tantas delas o repetiram, porque estávamos juntos nessa orfandade.
Mas é mais do isso. É também uma catarse, o momento em que podemos enfim deixar-nos abater pelo brutal ano de 2016, o ano em que vimos acontecer o que nunca julgámos possível: o regresso triunfante da xenofobia, do racismo, do sexismo, das ideologias de extrema direita, embrulhadas no populismo mais tresloucado, virulento e destrutivo; os EUA entregues a alguém de quem nenhum de nós quereria receber um aperto de mão, quanto mais um carro usado. A mentira propalada como "a minha versão da verdade que vale tanto como a tua". A Europa em fanicos, impotente, sem ideia de caminho. A democracia tomada de assalto, desvirtuada, contrabandeada, contrafeita pelos seus inimigos.
Já não soubemos o que ele, político da política clássica e da democracia como facho sagrado, teria para dizer sobre tudo isto. Mas esta morte, agora, de um símbolo da construção da Europa como lugar de generosidade, união, progresso económico, combate às desigualdades e "nunca mais" (o nunca mais das guerras mundiais e dos campos de concentração, da perseguição dos "diferentes", dos "inferiores", dos "subversivos" que é a memória do nazismo mas também do estalinismo), é-nos ainda mais simbólica quando nos sentimos tão perdidos, tão em choque com uma história cujos ventos parecem determinados a fazê-lo anacrónico, ícone de uma era dourada.
Esta dor é isso tudo. Mas é ainda outra coisa. Porque de súbito nos sentimos a descoberto, na primeira linha, expostos ao vazio, ao negro, a um aterrador desconhecido. Todas as desculpas usadas, perdidas; já não podemos continuar a queixar-nos "deles", dos mais velhos, dos seus erros e equívocos, por mais errados e equivocados que tenham às vezes estado; já não interessa. Já não podemos confortar-nos na suposta superioridade dos que não sujam as mãos, dos que ficam a assistir, dos treinadores de bancada, na rebelde e adolescente irresponsabilidade dos que aproveitam o que fica do esforço, da luta e dos riscos dos outros (e que mal fica ao PCP, que em tempos, sob Cunhal, foi capaz de saber que votar Soares era votar pela sua própria sobrevivência e sobretudo pelo bem do país, o seu comunicado de ódio e mentira).
Este desaparecimento passa-nos, como bem frisou Marcelo - antes de todos os que já repetiram o mesmo -- o testemunho. Diz-nos que temos de ser nós, agora. "Agora ficamos sozinhos", escreveu Sérgio Sousa Pinto no Facebook. Ficamos, mas somos muitos.