A casa dos nazis
O que é a América? O hino diz "casa dos bravos, terra dos livres". Lembrá-lo anteontem ao olhar, em estupor, as imagens de Charlottesville. Homens em equipamento militar e metralhadoras, homens que não são nem soldados nem polícias, a caminhar para o local de encontro de uma manifestação; bandeiras nazis, braços estendidos na saudação nazi, cartazes antijudeus e antinegros, gritos de Heil Trump, insultos racistas. Um polícia negro, de óculos escuros e cabeça pendente, enquadrado por nazis cujo direito à manifestação está a defender. O direito a dizerem que ele é de uma espécie inferior; que a luta contra a escravatura foi um erro; que o Sul esclavagista tinha razão, que a Ku Klux Klan e os seus linchamentos estavam e estão certos.
Para a Europa onde os códigos penais de vários países, a começar pelo da Alemanha e incluindo o nosso, criminalizam a defesa da ideologia nazi e a negação do genocídio judeu, e onde é interdito levar armas para manifestações, o que se viu ontem em Charlottesville parece saído de uma distopia como A Conspiração contra a América, de Philip Roth.
Mas não, não é a primeira vez que se veem cruzes suásticas nas ruas dos EUA: o símbolo, como a ideologia nazi e as formas extremas de discurso racista consubstanciadas pelo Ku Klux Klan, está abrangido pelo direito intitulado de free speech (ou "liberdade do discurso/ideias"), considerado uma das bases fundamentais do regime democrático americano. A mais poderosa organização americana de defesa dos direitos civis, a ACLU, ligada à batalha pela igualdade dos negros, defende que o discurso nazi está e deve estar abrangido pelo direito ao free speech. A ponto de ter apoiado a pretensão, levada a tribunal, de um grupo nazi que queria fazer uma marcha num subúrbio de Chicago, Skokie, onde viviam sobreviventes do Holocausto. Em 1977, escassos 32 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial.
O que há então de tão chocante nos acontecimentos de Charlottesville?
Desde logo, uma morte e vários feridos naquilo que tudo leva a crer ter sido um ato de terrorismo, aliás usando um método típico do Daesh: arremessar um automóvel contra peões, no caso contramanifestantes. O condutor participou na marcha nazi e o seu Facebook parece não deixar dúvidas sobre as suas ideias políticas. Mas também não é a primeira vez que os EUA se confrontam com terrorismo dito "supremacista branco" ou "nacionalista branco".
Portanto, não: o que torna o acontecimento de Charlottesville tão aterrador não é o acontecimento em si. É o contexto. E o contexto é o de um discurso, cada vez mais insistente - incluindo em Portugal -, que garante que o "politicamente correto" e a luta pelos direitos das minorias constituem um ataque à liberdade e aos direitos "da maioria branca". O contexto é o de um governo que alberga membros de extrema-direita, como um dos principais conselheiros de Trump, Steve Bannon. O contexto é o de um presidente que passou a campanha a incitar à violência - "nos bons velhos tempos ele [referindo alguém que foi a um comício seu protestar] teria saído daqui numa maca; gostava de lhe dar um murro"; "nos bons velhos tempos sabíamos como lidar com esta gente" -, que nunca rechaçou o apoio dos "supremacistas brancos" e que, questionado sobre o patrocínio do Ku Klux Klan, disse não conhecer David Duke (ex-dirigente da organização, que apelou ao voto nele). Um presidente que, na sequência do ocorrido no sábado, condenou "a violência e ódio de vários lados" - repetindo, com intencional sublinhado, "de vários lados" - não tendo, até ao momento em que escrevo (domingo à noite) e apesar dos múltiplos apelos nesse sentido, incluindo de muitos republicanos "notáveis", como McCain, Paul Ryan e até Ted Cruz, condenado especificamente os nazis.
É esta a grande diferença de Charlottesville: pela primeira vez na história dos EUA, um ato terrorista não foi inequivocamente execrado pelo presidente e a ideologia nazi não foi inequivocamente condenada.
O que Trump disse no seu comentário foi que para si não há nada de especial ou especificamente condenável na ideologia nazi. Este homem que até tem uma filha convertida ao judaísmo e um genro judeu acha que não tem de se demarcar de uma marcha em que foi aclamado e cujos participantes usaram tochas, numa referência óbvia às expedições punitivas da Ku Klux Klan e dos nazis alemães (e nomeadamente à Kristallnacht em 1938, a noite em que na Alemanha foram incendiadas sinagogas, lojas, escolas e casas de judeus, com mais de cem mortos e 30 mil presos e enviados para campos de concentração), e cartazes em que se lia "os judeus são filhos do diabo". Acha que não tem de se demarcar de um seu apoiante que carregou sobre uma multidão, matando uma pessoa e ferindo 19.
"Nazis go home, there's no place for you here" (Nazis, vão para casa, não há lugar para vocês aqui), disse, no discurso de reação aos acontecimentos, o governador da Virgínia, o democrata Terry McAuliffe.
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É onde, "aqui"? Charlottesville? A Virgínia? Mas a Virgínia é na América. Aqueles nazis são americanos - e como o reivindicam. Acham-se mesmo os únicos americanos de pleno direito, os donos da América. E que a Casa Branca é deles.