Diário de uma teocracia suave, parte 2
Portugal não aceita que estados islâmicos invoquem motivos religiosos para não cumprir obrigação de acabar com a discriminação das mulheres. Pode aceitar que igrejas os invoquem cá?
"Se não toleramos homicídio, violência, discriminação racial ou abuso sexual em nenhuma organização religiosa, porque é que não apenas toleramos, mas até legislamos, no sentido de lhes permitir discriminação de género?" A pergunta é do presidente do conselho de administração da agência escocesa para as artes (Creative Scotland), Ben Thomson, em agosto de 2017. Thomson, que considera a discriminação de género nas religiões um "elefante na sala" que a política tem de enfrentar, fez a sua intervenção no âmbito de um processo de audições do governo escocês para rever as leis de igualdade de género.
No Reino Unido o Gender Equality Act de 2010, que proíbe discriminação de género no acesso ao emprego, inclui uma exceção para o emprego em organizações religiosas. É a essa exceção que Thomson refere e considera dever ser abolida. E conclui: "Se queremos integrar muçulmanos, cristãos, judeus, hindus e as outras religiões na nossa sociedade, então, enquanto aceitamos as suas especificidades e diferenças, eles devem aceitar que temos um quadro ético que inclui a proibição da discriminação de género e que deve estar na base de todos os setores da nossa sociedade, incluindo a religião."
Na semana passada, escrevi aqui sobre este assunto, ecoando uma pergunta de Teresa Beleza no mesmo sentido da de Thomson e na qual a diretora da Faculdade de Direito da Nova reputava de inconstitucional a discriminação de género praticada pela generalidade das organizações religiosas. Na sequência do meu texto, participei em várias discussões. O constitucionalista Jorge Reis Novais disse-me considerar que a Constituição não se aplica aos particulares - apenas obriga o Estado - mas que o facto de as comunidades religiosas estabelecerem protocolos com o Estado e receberem dele benefícios vários, incluindo subsídios, já poderá justificar imposição de condições. Ou seja, do seu ponto de vista o que está em causa, sempre, é a ação ou a omissão do Estado - se é ou não inconstitucional financiar e reconhecer utilidade pública a organizações que discriminam em função do género. Mas, acrescentou, "os meus colegas que acham que a Constituição se aplica aos particulares terão mais dificuldade em responder à questão de Teresa Beleza."
Houve também quem invocasse a Concordata entre o Estado e a entidade denominada Santa Sé asseverando ter, como tratado internacional, dignidade superior à da Constituição. Esta argumentação poderia apontar no sentido de a Igreja Católica estar isenta de cumprir a proibição da discriminação de género mas as restantes comunidades religiosas, submetidas à Lei da Liberdade Religiosa, com dignidade infraconstitucional, não. Mas a verdade é que mesmo que se recuse a superioridade - aceite pela maioria dos juristas - da Constituição em relação à Concordata, há outros tratados ou convenções internacionais a que Portugal está obrigado, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, ratificada em 1980, a contrariar aquela leitura. Nesta, logo no artigo segundo, os Estados signatários obrigam-se a "tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação praticada contra as mulheres por uma pessoa, uma organização ou uma empresa qualquer", "adotar medidas legislativas e outras medidas apropriadas, incluindo a determinação de sanções em caso de necessidade, proibindo toda a discriminação contra as mulheres", "instaurar uma proteção jurisdicional dos direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens e garantir, por intermédio dos tribunais nacionais competentes e outras instituições públicas, a proteção efetiva das mulheres contra qualquer ato discriminatório", referindo-se inclusive o dever de modificar "costume ou prática que constitua discriminação contra as mulheres". E no artigo 11.º "comprometem-se a tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres no domínio do emprego com o fim de assegurar, com base na igualdade dos homens e das mulheres. os mesmos direitos, em particular (...) às mesmas possibilidades de emprego, incluindo a aplicação dos mesmos critérios de seleção em matéria de emprego".
De realçar que Portugal, cuja legislação não contém qualquer norma explícita semelhante à referida na Gender Equality Act britânica e que permita às comunidades religiosas discriminar em função do género, se opôs formalmente a reservas apresentadas à Convenção por vários Estados islâmicos - Arábia Saudita, Emirados Árabes, Qatar, etc. - invocando a sharia e motivos religiosos. Fê-lo considerando que essas reservas "minavam as bases da lei internacional" e "criavam sérias dúvidas quanto ao compromisso assumido pelo Estado [em causa] no que dizia respeito ao objeto e propósito da Convenção e às obrigações por ela impostas". Ou seja: Portugal não aceita a outros Estados exceções, fundadas em princípios religiosos, ao princípio da não discriminação das mulheres, mas tolera-as a comunidades religiosas dentro do seu território? É evidente que se trata de uma contradição e que a discriminação de género imposta pelas igrejas na contratação de funcionários e nomeação de líderes, nunca objeto de exame pelos tribunais nacionais ou europeus, tem de ser encarada e debatida.