17 agosto 2017 às 00h00

Trump, vampiros e automóveis

Mário Avelar

Talvez a melhor forma de abordar a realidade americana contemporânea seja lembrando um filme de... vampiros, Amantes Eternos, de Jim Jarmusch.

Para explicar esta ideia, começo por recordar essa obra fundamental para a compreensão do universo americano que é A Educação de Henry Adams, do bisneto de John Adams, pai fundador e segundo presidente da nova nação. Quem a tenha lido não ficou surpreendido com a impetuosidade das críticas a Washington (leia-se, governo central) durante as eleições presidenciais, pois já no século XIX a denúncia da mediocridade e dos lobbies era intensa.

Com efeito, quando o governo federal e a sua burocracia são mencionados nos debates ou nas arremetidas elípticas do Twitter, que chegam do outro lado da Atlântico, não raro os lemos à luz da nossa realidade, como se Lisboa (leia-se, o governo da República) fosse uma espécie de Washington em ponto pequenino. Nada de mais errado, porém! E tal não se deve tanto à óbvia diferença de dimensões entre as duas cidades e os dois países mas, fundamentalmente, a três aspectos: ali cada estado sedimentou ao longo do tempo uma identidade própria; apesar das diferenças mais ou menos evidentes entre eles, existem traços culturais que os unem; a interacção entre governo local e central é assegurada através de mecanismos institucionais, os checks and balances. Tudo isto foi há muito sinalizado por Hector St. John of Crèvecoeur e por Tocqueville.

Deste modo, encapsular a complexa realidade americana em dicotomias como cidade vs. campo, norte vs. sul, novos vs. velhos, iletrados vs. letrados, red necks vs. sofisticados será sempre redutor.

Comprova-o a polémica que tem ocupado as páginas do The Times Literary Supplement, devido a um artigo de Edward W. Luttwak em que ele defende quão relevante para o actual estado das coisas é um tópico algo insólito... o automóvel.

Há décadas conselheiro de organismos governamentais, estratega conhecido por opiniões e previsões polémicas (por vezes contrariadas pela realidade, como a da inevitável vitória soviética no Afeganistão), Luttwak aproveita uma recensão de quatro livros sobre a América contemporânea - Dans la Tête de Donald Trump, de Anne Toulouse, How the Hell Did This Happen?, de P. J. O"Rourke, The Destruction of Hillary Clinton, de Susan Bordo, e Shattered - Inside Hilary"s Clinton Doomed Campaign, de Allen e Parnes - para elaborar uma defesa da relevância que o automóvel assume na América e do impacto que as políticas que o envolvem têm no cidadão comum e do seu eco no desfecho presidencial do ano passado.

Disse ser este um tópico insólito. Não escasseiam análises do "fenómeno Trump" radicadas nas dicotomias que referi, e de outras, todas elas previsíveis por reproduzirem banalidades assentes em certezas preexistentes, em que amiúde reverberam preconceitos ideológicos. Ora, a virtude deste argumento, por muito enviesado que ele seja, consiste em deslocar o foco da reflexão para solos exóticos, e assim poder desvendar motivos de análise que não se confinam às categorias culturais e políticas tradicionais.

Escrevi "à partida". De facto, ao observarmos a história da América, constatamos que ela se escreve com a estrada, signo que rasga os horizontes e que o cinema consagrou num género específico, o road movie; um género que a minha geração associa a Easy Rider, que a gerações ulteriores trará à mente Juventude Inquieta, de Coppola, e que as precedentes evocarão através de As Vinhas da Ira, de John Ford, suscitado pelo romance de John Steinbeck, e de A Estrada do Tabaco, do mesmo Ford, impulsionado pela obra de Erskine Caldwell. Esteja ela associada ao mito (pela estrada fora canta Kerouac as demandas da geração do pós-guerra) ou à sobrevivência (o sofrimento da grande depressão sublimemente figurado pela expressão de Henry Fonda no filme de Ford), a estrada foi o eixo a partir do qual se construiu na fronteira uma estética arquitectónica.

Tudo isto - cultura, mito, estética - é indissociável de algo prosaico, a necessidade de se deslocar do ponto A para o B. Num país de extensões esmagadoras (uma reportagem exibia, há dias, o caso de uma família que fizera uma viagem de trezentos quilómetros para visitar um centro comercial no Minnesota) e onde os transportes públicos, exceptuando urbes como Nova Iorque ou São Francisco, não são exemplos de excelência, o automóvel desempenha um papel fulcral no quotidiano de milhões de pessoas.

Quando em The Nine Nations of North America Joel Garreau tentou desvendar os traços identitários dos EUA que não se circunscreviam a fronteiras estaduais e nacionais, identificou um espaço geográfico que seria o coração industrial da América e que, envolvendo os estados do Midwest, se uniria ao Canadá. Designou-o A Fundição e elegeu como capital Detroit, sede da indústria automóvel.

Trinta anos após a sua publicação, o The New York Times assinalou a argúcia de Garreau. Tal não significa que aquelas nações não se tenham alterado profundamente, como a que referi, e a que outrora foi a sua fluorescente capital, e que hoje é uma ruína de glórias pretéritas. Não será por acaso que Jim Jarmusch a viu como espaço de acolhimento de vampiros em busca de uma solitária clausura.

Ora, Luttwak defende que a legislação de Obama, ao tornar obrigatórias alterações funcionais nos automóveis, embora os tenha tornado amigos do ambiente e mais seguros, restringiu radicalmente a venda de carros usados, acessíveis a famílias de classe média baixa que deles necessitam para o dia-a-dia, e elevou substancialmente o preço de carros novos. Talvez seja redundante esclarecer que, ao contrário de Hillary, Trump se opunha à legislação restritiva.

Não terá sido por isto que ele saiu vencedor. Mas este foi um debate que para os americanos não terá sido displicente. O que não faz de Donald um vampiro nem de Hillary uma gárgula, mas que pode fazer de Washington, para muitos, o lar... de mortos-vivos que persiste sugando o sangue alheio.

Professor catedrático de Estudos Anglo--Americanos da Universidade Aberta - CEAUL