Médico de família para todos

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A dimensão da lista de utentes e o contexto de exercício são determinantes valorizadas pelos médicos de família e pelos seus utentes e doentes. Listas de utentes sobredimensionadas e unidades de saúde disfuncionais dificultam o trabalho, provocam exaustão, desqualificam o ato médico e aumentam o risco e a probabilidade de erro. Por isso nos preocupamos com as condições de exercício. Por isso defendemos o exercício clínico organizado em pequenas equipas multiprofissionais e de proximidade. Assim promovemos os valores humanistas da prática da medicina dirigida à pessoa. A dignidade do ato médico exige a prestação de cuidados de saúde com segurança e rigor científico. Estes são princípios irrevogáveis.

Olhar para quantidade de médicos de família, isto é, saber quantos são e onde estão, é absolutamente necessário, mas não chega! No próximo ano poderemos ter disponibilidade de médicos de família para todas as pessoas, mas não é garantido que se consigam resolver as desigualdades geográficas existentes. As condições de acesso das pessoas a unidades de saúde ainda têm algumas assimetrias regionais. Estas desigualdades exigem coordenação, orientação e intervenção administrativa e política.

A população nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e do Algarve continua a aumentar e o número de utentes inscritos sem médico de família nestas duas regiões é cada vez maior. Em agosto, a Região de Lisboa e Vale do Tejo atinge 18,6% de utentes inscritos nas unidades de saúde mas sem médico de família e o Algarve chega aos 20%! Na ausência de medidas políticas que invertam esta situação, de modo a aumentar o número de médicos de família nas unidades de saúde de Lisboa e Algarve, significa que iremos ter cada vez mais utentes com acesso limitado a cuidados de saúde. A média de utentes sem médico de família no continente aumentou de 8,1% para 9,2% de março para agosto de 2017. Nestes cinco meses passámos de 809 mil para 925 mil utentes sem médico de família. Mas este aumento de mais de cem mil utentes sem médico de família ocorreu principalmente nestas duas regiões onde o problema já era maior! Ou seja, onde havia mais dificuldades houve um agravamento!

As assimetrias regionais são preocupantes e geram iniquidades que obrigam a encontrar soluções, cuja espera não se pode prolongar no tempo. A leitura de pormenor exige uma apreciação por Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) e por unidade de saúde. Há situações preocupantes nas duas regiões.

Na Região de Lisboa e Vale do Tejo faltam entre 20 e 30 médicos de família em quase todos os ACES. Nesta região é onde há mais colegas com um maior esforço, assumindo mais doentes nas suas listas e claramente acima da média nacional. Ainda assim, cerca de um terço ou mais de unidades de saúde têm situações muito difíceis. Este sobredimensionamento das listas de utentes não é desejável e a quantidade pode pôr em causa a qualidade dos cuidados de saúde, ou no mínimo ser causa de exaustão.

No Algarve o problema é principalmente localizado ao ACES Barlavento, onde cerca de 40% dos utentes não têm médico de família.

Nestas regiões - as que têm mais população sem médico de família atribuído - vai ser mais difícil atingir a cobertura universal se nada for feito entretanto. As soluções terão de ser dirigidas a cada situação, mas é urgente encontrar um caminho.

O caminho em construção passa inevitavelmente por aumentar a capacidade formativa de médicos de família. Todavia, é necessário investir numa política de criação e apoio ao desenvolvimento de novas unidades de saúde, dotadas de meios e capazes de receber as centenas de médicos que temos em formação.

Neste novo caminho, a valorização do contexto de exercício e a dimensão da lista podem e devem ser padronizados de forma a caracterizar a complexidade do trabalho do médico de família. A qualidade da prática do médico de família depende em boa parte da dimensão ponderada da sua lista de utentes tendo em conta múltiplos fatores que influenciam o trabalho do médico.

O trabalho dedicado aos cuidados de saúde à pessoa e à família, assim como as condições disponíveis para a prestação de cuidados médicos em unidades de saúde de proximidade são muito variáveis no nosso país. As assimetrias geográficas determinam diferentes condições de acesso a cuidados de saúde e ainda maiores desigualdades no exercício do médico de família. A dimensão da lista de utentes de cada médico, o contexto social de exercício profissional e o tipo de unidade de saúde têm uma relação indissociável que deverão ser consideradas.

A Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar desenvolveu um estudo para a ponderação de listas de utentes de modo a facilitar a formação de unidades de saúde com equipas multiprofissionais em todos os contextos sociodemográficos e valorizando as diferenças existentes entre diferentes comunidades. Estamos convictos da necessidade de desenvolver esforços para aperfeiçoar o modelo e estamos disponíveis para o trabalho, mas é obrigatório encontrar soluções urgentes para as assimetrias no acesso dos utentes ao médico de família. Vamos ter médico de família para todos, mas é necessário resolver alguns problemas.

Presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

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