Carolina Coronado
O Palácio da Mitra, em Marvila, albergou a poeta espanhola Carolina Coronado até ao seu falecimento em 1911. Carolina Coronado nasceu em Almendralejo, na província de Badajoz, em 1820. Cremos que, como em tempos romanos, para um estremenho o seu lugar natural, o seu centro nevrálgico, deveria ser Lisboa. Emérita Augusta era, recordemos, a capital da Lusitânia. Hoje, é Lisboa que atrai os estremenhos, está mais perto de Madrid. As capitais políticas são um acrescento institucional que pouco tem que ver com as tendências geográficas, humanas, de um povo. Nada mais natural e lógico do que Carolina Coronado ter elegido Lisboa para os seus últimos 40 anos.
O palácio, que foi sede patriarcal e depois museu da cidade, pertence à Câmara Municipal e está perfeitamente cuidado. A memória de D. Carolina permanece e mostram-me onde foi o seu gabinete e os seus aposentos que, naqueles tempos, tinham vista para o Mar da Palha. Ali passou os seus últimos anos, contemplando os amanheceres de névoa dourada ou as manhãs de nevoeiro e escrevendo lentamente nas tardes de chuva, essa chuva que só caía no século XIX.
É um lugar comum o estarmos de "costas voltadas". Muitos espanhóis ilustres olharam para Portugal, muitos conheceram e elogiaram este país, o seu povo, as suas paisagens, os seus escritores e artistas. Carolina Coronado, como tantos outros. Ramón Gómez de la Serna, o amigo de Almada Negreiros, Gonzalo de Reparaz, Unamuno, Josep Pla, Matilde Ras, Adriano del Valle, Angel Crespo, D. Juan de Bourbon - avô do rei de Espanha - na VillaGiralda, no Estoril, José María Gil-Robles, líder da CEDA, Pedro Sainz Rodríguez, o erudito, académico e político franco-monárquico, que viveu na rua Alexandre Herculano, nº 5. E muitos mais ainda, sem contar com exilados carlistas como os Olazábal, ou o mesmo Bulhão Pato, filho de bilbaína (as suas ameijoas são, na minha opinião, uma versão das ameijoas à bilbaína). Apenas um, que viveu longos anos na avenida 5 de Outubro, José Ortega y Gasset, passou sem deixar um parágrafo - apesar de tão prolífero que foi - dedicado à sua pátria de adoção, na qual teve muitos admiradores, como Pedro Moura e Sá, entre outros.
Teve Carolina Coronado muitos amigos portugueses, entre eles D. Sofia Burnay, condessa de Mafra. Era uma personalidade que deslumbrava, e deslumbrou, entre outros, Alexandre Dumas quando este apareceu em Madrid, a quem teve de oferecer um fraque para que se apresentasse nos actos sociais. Foi amiga pessoal da rainha Isabel II de Espanha. O diplomata espanhol acreditado em Lisboa, Gabriel García Tassara, teve um início de romance com ela, já o seu marido tinha falecido, o diplomata norte-americano Horace Justus Perry.
Precisamente graças a Perry puderam acolher em 1866 Sagasta e Castelar na Legação norte-americana em Madrid, evitando que fossem fuzilados quando eram perseguidos por O"Donnell após a sublevação dos sargentos de San Gil que estes dois políticos tinham apoiado. Perry conseguiu fazê-los sair de Espanha para Paris, para um exílio que se prolongou até 1868.
D. Carolina foi uma mulher liberal, culta e cosmopolita, algo raro entre os espanhóis da época. Hoje, de D. Carolina restam-nos poucas memórias, entre elas o retrato que pintou Federico de Madrazo e uma estátua em Badajoz. Em Portugal, nenhuma. Ah! Se em vez de ser espanhola tivesse sido francesa ou inglesa!
Carolina Coronado escreveu vários romances históricos, entre eles La Sigea (Luisa Sigea foi uma erudita castelhana do século XVI) onde um dos protagonistas é nada mais nada menos que Luís de Camões, e Paquita, onde aparece Sá de Miranda. A sua cultura portuguesa era ampla e profunda, sobretudo dos líricos clássicos. Também deixou poemas a Portugal, até um sobre o Terramoto de Lisboa,
A papoula da raia
Sempre ao estender a vista pelo plano
Do âmbito campestre que me encerra
Vi o horizonte lusitano
Tocando os prados da minha terra;
(...)
E colhi as sósias papoulas
Que não são portuguesas nem espanholas
Ao imperador D. Pedro de Portugal
Se o meu estrangeiro pé, lusitanos,
Gostásseis cortesãos
De pela terra guiar, para mim entranha,
Cantaria
Uma terna poesia
Do grande Pedro em honra, a filha de Espanha.
Carolina Coronado é, pois, outra prova mais de que o mito tenaz, esse lugar comum das "costas voltadas", não foi assim; sim, pode tê-lo sido no político, não o foi no humano, ainda que a reciprocidade não tenha sido sempre simétrica e mais portugueses tenham olhado para Espanha, para a sua cultura, do que espanhóis para Portugal.
Escritor espanhol residente em Portugal