31 agosto 2009 às 01h00

A presunção de inocência

Rogério Alves

A presunção de inocência é uma marca de água do Estado de direito. Sem ela regressaríamos à pedra lascada, um retrocesso brutal e assustador. Com lugar cativo na Constituição impõe que todo o arguido se presuma inocente até ao trânsito em julgado de uma decisão judicial que decida em contrário. Acabar com a presunção seria terrível e só imaginável numa patologia de pesadelo. Em vez de ser a máquina pública de investigação, com todo o sortido de poderes e meios coercivos de largo espectro, a demonstrar a culpa de um cidadão, teria de ser este a provar a respectiva inocência. Prove que nunca foi ao Porto, prove que não bateu no senhor A, prove que não furtou a carteira do sr. B. Recenseio exemplos comezinhos, deixando à imaginação do meu caro leitor a adição de todos os demais imagináveis. A visualização deste cenário gerará legítimos ataques de pânico, alergia máxima e um poderoso clamor de rejeição. Se na vigência da presunção as coisas são como são, pense-se no que seria o contrário, qual nova inquisição corrigida e modernizada, contaminada por invejas, mesquinhices, vinganças e seus derivados. Ficam renovados os sempiternos votos à figura. Falemos agora dos seus contornos. A presunção de inocência aplica-se aos arguidos, não se aplica aos políticos, nem pela letra da lei, nem pela força da prática. Concordo e digo-o amiúde, que os dois hemisférios, o judicial e o político, devem manter- -se separados. Não há grelhas de equivalência nem silogismos do tipo "és arguido, logo ficas inutilizado para a vida pública". Os dois mundos têm ritmos e tratamentos distintos. Há arguidos inocentes e não arguidos culpados. Mas os dois mundos podem ter em comum os mesmos factos controvertidos. Deixem- -me dar-vos este exemplo inóquo para as presentes controvérsias: os clientes de um restaurante verificam, com os seus próprios olhos, que ali não são observadas regras de higiene e salubridade. Os produtos estão degradados, em violação das leis e dos regulamentos. O que fazem? Não escolhem mais o estabelecimento. Pelos mesmíssimos factos o responsável pode vir a ser constituído arguido pela prática de um crime contra a saúde pública. Produzir-se-á prova, a coisa demorará, poderá mesmo prescrever. Mas nós é que não vamos mais ao restaurante, reafirmando a autonomia dos dois universos: o judiciário e o outro. Para o cidadãos clientes pouco ou nada interessa o destino do processo judicial. Já sentenciou politicamente o assunto: o restaurante está proscrito. Viu os factos e não os viu serem justificados, desmentidos nem corrigidos. Isso basta-lhe para fazer a sua escolha pessoal. Ninguém pode ser condenado com base em rumores, boatos, insídias, calúnias ou afins. Nem na política nem na justiça. Mas se os factos são conhecidos e o visado não se justifica cabalmente, terá de arrostar com as consequências. Na justiça de acordo com o seu ritual e na política de forma mais sumária. Esta limpeza ética cabe aos partidos e é necessária para que os cidadãos acreditem neles.

Tópicos: Opinião