Rescaldo
Falhou quase tudo: os serviços de previsão, prevenção e protecção, a coordenação geral das operações e os sistemas de comunicação. Como parece estarem agora a falhar o apuramento de responsabilidades e a detecção de erros.
Com a preocupação de conhecer o seu grau de popularidade, logo após as duas semanas de incêndios, o governo (ou o PS) encomendou um estudo dito de focus group. Este gesto resume, no essencial, a noção que o governo tem da opinião dos cidadãos e dos deveres a que está obrigado.
Depois de uma sessão parlamentar durante a qual, para não chocar a opinião, os partidos entenderam ser cordatos, logo no dia seguinte os deputados e os ministros desancaram-se sem estribeiras nem educação.
A desgraçada floresta portuguesa continua a receber tratos de polé! Após três ou quatro décadas de atraso, a legislação da sua reforma vai agora ser aprovada à pressa, para mostrar trabalho feito. É triste ver como o desastre leva à asneira. E vice-versa. Sucedem-se as revelações a propósito das responsabilidades governamentais na assinatura do contrato de parceria público-privada com o SIRESP. Crescem as dúvidas, tanto por causa do parecer do Tribunal de Contas como pelo facto, agora conhecido, de ter sido afastada a alternativa mais eficiente e mais barata, mas de que não faziam parte o BES, o BPN e a PT. Entretanto, uma comissão de avaliação do SIRESP é constituída por um organismo que inclui um accionista do SIRESP.
Cinco organismos públicos e um privado ao serviço do público, além das câmaras municipais e de vários grupos de bombeiros, têm ideias opostas sobre o que se passou e, pelas deficiências encontradas, atribuem responsabilidades a organismos diferentes. A falta de coordenação e de autoridade com que os operacionais, os consultores e os subcontratados reagiram nos momentos mais dramáticos prossegue agora nas operações de rescaldo e na determinação de responsabilidades.
Os bodes expiatórios abundam, cada um tem o seu. O SIRESP foi o culpado. A ministra deve demitir-se. A responsabilidade é do eucalipto. O eucalipto deve ser proibido. A culpa é dos proprietários privados. A responsabilidade pelas mortes é da GNR. A culpa é do Serviço de Prevenção. Já se percebeu que há muita gente a querer fugir à responsabilidade. Já se entendeu que a estratégia do governo é a da dissolução de responsabilidades.
Num caso como este, definir a causa e a culpa é uma das maiores dificuldades do processo de averiguação. A falta de previsão e a negligência são muito difíceis de determinar. Distinguir entre as causas imediatas e longínquas é complexo. Destrinçar responsabilidade, negligência, dolo, culpa, ineficiência, imprevidência e desleixo é muito complicado. Identificar as responsabilidades e as culpas, diferentes da incompetência, é tarefa delicada. Espera-se que nada disto seja motivo para atraso e manipulação. Espera-se que tudo isto seja razão para diligência e rigor.
Mais uma vez, o país mostrou a sua persistente fragilidade. Inundações, incêndios, seca, chuva e temporal, se ultrapassam as normas e as rotinas, logo se transformam em desastre. Num país tão sequioso de sucesso e êxito, de vitórias e glória, é difícil encontrar a mesma atenção para o que é sério, a segurança dos cidadãos. Entretanto, esperam-se respostas rápidas, prontas e generosas. Indemnizações magnânimas para muitas vítimas e respectivas famílias. Apoios aos feridos e doentes, assim como aos que ficaram sem ajuda familiar. Justos subsídios aos que precisam urgentemente de reconstruir as suas casas. Subvenções aos que ficaram sem instalações agrícolas, celeiros, adegas, animais e tractores.
Como é hábito e está nas melhores tradições nacionais, é possível que, relativamente às responsabilidades e às culpas, nada venha a averiguar-se. Mas, ao menos, que sejam cuidadas as pessoas e as vítimas. E que, no futuro imediato, se trate, sem corrupção e sem PPP, dos sapadores, dos bombeiros, dos aviões, dos helicópteros e das telecomunicações.
Alguém disse: "Quem não conhece a história, fica condenado a vê-la repetir-se."
As minhas fotografias

Eira em Tourém, com trabalhadores e debulhadora Tourém fica no concelho de Montalegre, a norte da serra do Gerês, numa pequena parte do território português que parece entrar por Espanha adentro. A freguesia terá cerca de 150 habitantes. O cereal desta imagem de 1980 é o centeio. Nessa altura, aquela vetusta máquina era seguramente um sinal de modernidade. Era assim que se fazia agricultura há 40 anos. Ainda haverá sítios onde as coisas não são muito diferentes. Mas, na maior parte, já nada é assim. A demografia, a emigração, o envelhecimento, o supermercado, o turismo, as máquinas e talvez os incêndios alteraram tudo. É curioso verificar como, naquele tempo, no mundo rural, numa sociedade ainda tão atrasada e patriarcal, homens e mulheres, trabalhavam juntos.
© António Barreto
Por decisão pessoal, o autor deste texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico