Dois casos
Parece que nada liga um caso ao outro, o interrogatório de José Sócrates e os pagamentos em duplicado de viagens aos deputados insulares. Mas há uma linha indelével: a da facilidade com que se abusa da debilidade institucional.
O caso dos bilhetes dos deputados seria risível, não fosse o tom agressivo utilizado pelos que se aproveitaram. Em vez de se defenderem e de rectificarem, passaram ao ataque com a habitual grandiloquência: é legal, legítimo, eticamente irrepreensível e "tenho a consciência tranquila"! O problema é mesmo esse, terem a consciência tranquila!
Podiam ao menos dizer que iriam ver o que se passava. Que talvez houvesse um aspecto das leis a clarificar. Que a solução adoptada tinha defeitos e seria corrigida. Qualquer coisa... Qualquer coisa que não fosse defender a matilha e garantir que tudo era legal e eticamente a toda a prova... e que só os inimigos da democracia se lembrariam de pôr em causa políticos tão nobres e deputados tão impolutos...
Legal? Não se sabe bem. Legítimo? Não era. Moral? Nem pensar. Tudo grita que ensurdece, tudo brilha que cega: o sistema era falível, o pagamento era duplo, o reembolso não era devido, quase todos se calaram com boa ou má-fé... E não percebem o mal que fizeram. E não entenderam que a democracia estava a perder. E não lhes ocorre pensar um segundo que talvez não sejam imaculados e que a ética republicana, assim interpretada, é a da Feira da Ladra! E as instituições, fracas e capturadas pelos partidos, não parecem capazes de reagir e de rapidamente sanar a situação, a fim de evitar sequelas.
O segundo caso, o da divulgação em canais de televisão do interrogatório de José Sócrates, brada aos céus. Outros, incluindo os banqueiros arguidos, já por ali tinham passado. E também aqui não se viu, até agora, uma reacção institucional que traga decência e civilidade à justiça.
Mesmo em democracia, um interrogatório feito pela polícia é sempre um momento de debilidade pessoal. Seja ou não bandido ou aldrabão, tenha ou não um currículo violento, possua ou não músculos ou capital, partilhe ou não ferocidade com animais selvagens, um arguido ou um suspeito está sempre, durante o interrogatório, em situação de inferioridade, facilmente amedrontado, quase sempre em fragilidade psicológica. Mesmo quando reage com fúria destemperada, como foi o caso, o arguido está assustado e luta pela vida. Em pleno interrogatório, sobretudo se tem algo a esconder, se há culpa, se procura defender-se, qualquer pessoa, mesmo valente ou violenta, merece, porque é uma pessoa humana, um pouco de respeito. Uma justiça decente tem em consideração a humanidade das pessoas e dos processos. O que estão a fazer com José Sócrates é imperdoável. Como foi com os banqueiros e outros. A falta de respeito pelo arguido não é apenas isso: é sobretudo falta de respeito pelos cidadãos, por nós todos.
Não é o interrogatório que está em causa. A gravidade reside na sua divulgação, na exploração dos sentimentos dos mirones sem mais que fazer do que espiolhar a vida e o sofrimento dos outros. Um ou dois canais de televisão divulgaram longos pedaços daquele nauseabundo processo. Ninguém lhes foi às mãos, nem a justiça, nem as instituições que devem zelar pela qualidade do espaço público.
Não se trata de liberdade de expressão nem de justiça democrática. Nem uma nem outra devem recorrer à indecência. A justiça deve ser para todos, incluindo acusados, arguidos, culpados e prevaricadores. O direito é para todos, incluindo ladrões e criminosos. Os direitos fundamentais são para todos, incluindo os transgressores. Como a democracia é para todos, incluindo os não democratas.
Três instituições essenciais, o Parlamento, a Justiça e a informação, foram postas em causa. Os responsáveis pela divulgação desta grosseria não se dão conta do mal que fazem. Não se importam, nem percebem os danos que causam às liberdades e ao seu país.
As minhas fotografias
Estação Oriente, Lisboa Bela estação esta desenhada pelo arquitecto espanhol Santiago Calatrava. Inaugurada em 1998, tem o nome mais fino de Gare do Oriente. Vista de longe, impressiona. No interior, há planos de elevada fotogenia e podem fazer-se imagens graficamente muito interessantes. É esteticamente uma bela obra. Mas não há bela sem... Os serviços prestados deixam a desejar. O conceito centro comercial é pindérico. O circuito dos passageiros é difícil. Quando chove ou faz vento, a Gare é desconfortável. É este um ponto alto da renovação do caminho-de-ferro português que se arrasta. Apesar do aumento de passageiros em algumas linhas, a renovação tarda. As linhas estão velhas e tremem. As carruagens estão nas últimas e trepidam. As casas de banho dos Alfa são um monumento definitivo à imundície e ao design absurdo que faz objectos impraticáveis. É de qualquer modo garantido: melhor do que o comboio não há.