Os Herdeiros da Parada
O vestido florido de Melania resplandecia contra um mar de cinzento e azul-escuro. A primeira-dama dos Estados Unidos batia palmas solenemente, enquanto o marido, Donald Trump, fazia sinal de continência com a mão direita, expressão grave, corpo muito direito. Ao lado, o presidente francês, Emmanuel Macron, e a mulher, Brigitte Macron, aplaudiam ocasionalmente, sérios, compostos, com orgulho.
A parada militar do Dia da Bastilha em Paris, a 14 de julho do ano passado, deixou Donald Trump encantado, arrasado de fascínio, desfeito em elogios. "Foi uma das melhores paradas que alguma vez vi", diria mais tarde o presidente americano, olhos brilhantes, sentado ao lado de um Emmanuel Macron sorridente. "Uma coisa tremenda para a França." A parada deixou nele uma impressão tão profunda que Trump pediu uma igual em Washington. "Quero uma parada como aquela em França", ordenou o presidente ao Pentágono, que não teve outro remédio senão anuir e começar a planear datas e logística para tal evento, talvez a 4 de julho. Importar tanques e parafernália militar vai custar milhões de dólares, mas esse é um pormenor que se perde no fogo dos desejos do presidente dos Estados Unidos. Afinal, Vladimir Putin também tem paradas na Rússia. E as de Kim Jong-un na Coreia do Norte, já espreitaram? É uma coisa de morrer.
O facto de a parada francesa ser uma tradição histórica que comemora a tomada da prisão da Bastilha, uma oportunidade de celebrar a revolução e a liberdade, terá ficado perdido algures entre o estonteamento das farpelas militares e a demonstração de orgulho nacional. A França convida para este evento anual exércitos de outros países, que por vezes até comandam o desfile; na edição a que Trump assistiu, estavam 150 militares americanos. Desfraldam-se as bandeiras de outros países, por vezes a da União Europeia. É um espetáculo de união e homenagem aos heróis do passado, não uma demonstração de poderio bélico.
Não surpreende, portanto, que este pedido de Trump ao Pentágono tenha feito levantar sobrolhos nos Estados Unidos, onde não existe tradição de paradas militares, salvo para celebrar vitórias em grandes conflitos. A última foi em 1991, quando rolaram estrada abaixo os tanques que ajudaram a vencer a Guerra do Golfo. Nem George W. Bush, que iniciou duas guerras em que os Estados Unidos ainda estão metidos, teve a audácia de sugerir uma parada militar nos seus oito anos de mandato.
Acresce que este novo projeto de Trump surge numa altura de guerra aberta entre a Casa Branca, o partido Republicano e as agências de inteligência do país, com hostilidade total contra o FBI. Os comentários públicos questionando a integridade do FBI já tinham sido maus o suficiente, mas o memorando do lusodescendente Devin Nunes, chairman da Comissão Permanente de Serviços de Informação da Câmara dos Representantes, acabou com qualquer dúvida. O memo tenta arrasar o FBI e a forma como conseguiu autorização para fazer escutas a Carter Page, ex-conselheiro de política externa da campanha de Donald Trump. Mas os argumentos usados por Devin Nunes parecem contradizer-se uns aos outros; a escolha de uns factos e a omissão de outros tornam este memorando num exercício de utilidade questionável, além de se referir informação classificada que não pode ser revelada para contra-argumentar.
Havendo certamente problemas e críticas devidas a apontar ao FBI (e à CIA, NSA e outras), a divulgação de um memorando que tem como missão descredibilizar a investigação à ingerência da Rússia é incompreensível num Estado de direito. Mais ainda por parte do partido que historicamente defendeu as autoridades e as agências de inteligência. Fazê-lo antes do fim da investigação, sem ter acesso aos dados todos, não permite sequer avaliar os méritos dos argumentos. O segundo memorando que os democratas querem ver divulgado em contraposição sofrerá dos mesmos problemas: é uma guerra de palavras partidária que está a politizar uma investigação criminal.
Será neste ambiente de tensão, comentários depreciativos e teorias de conspiração sobre o "estado profundo" que os tanques vão rolar pela Avenida Pensilvânia abaixo, numa demonstração de força militar que não é propriamente necessária. Toda a gente sabe que os Estados Unidos têm o exército mais poderoso do mundo, com um orçamento que é quase o triplo dos da Rússia e da China - juntos.
Não é das decisões mais controversas do presidente; afinal, qual é o americano que não gosta de um bom desfraldar de bandeira? O amor aos militares é tão grande neste país que certamente a parada será um sucesso. Ninguém conseguirá opor-se sem ser apelidado de antipatriótico. Mesmo que apontem com preocupação para os milhões de dólares que serão gastos numa altura em que o governo de Trump ainda não passou um orçamento anual e mês sim, mês não o financiamento do Estado corre o risco de acabar por falta de acordo quanto às despesas necessárias. Mesmo que se preocupem com o défice, numa altura em que os cofres federais vão receber muito menos dinheiro devido ao corte monumental de impostos que foi aprovado. Mesmo que a cidade se descabele pelos estragos potenciais que tanques de sete toneladas farão nas suas ruas. Mesmo que, como alguns timidamente apontam, isto cheire um bocadinho a coisa que se vê em países não democráticos. A pompa e circunstância triunfarão ruidosamente sobre a substância.