A crise das instituições multilaterais

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Embora estejamos longe, segundo as melhores previsões, de saber confiadamente qual o caminho a eleger para orientar a construção da governança do globalismo, é útil tentar identificar as causa da crise das chamadas "instituições multilaterais", uma expressão prudente para não ferir a sensibilidade mais conservadora da organização hierárquica das soberanias, esquecendo que tal novidade nasceu das mudanças impostas pela visão humanista que colocou o homem no centro do mundo, não se podendo omitir que o sermão de Lutero, de 1512, é uma indispensável referência, tal como a responsabilização afirmada por Pic de la Mirandole, segundo Les Memoires de l"Europe (Paris, Laffont, 1971). Atribuiu estas palavras ao Arquiteto Superior, dirigindo-se ao homem: "Colocamos-te no centro do mundo para que de lá pudesses mais facilmente observar as coisas. Criámos-te nem do céu, nem da terra, nem imortal nem mortal, para que, pelo teu livre arbítrio, como se foras o criador da tua própria substância, para que pudesses escolher modelar-te na forma que preferires." Com longa tradição e experiência, a conclusão mais circulante foi a de Blackstone (1765-70), segundo o qual "existe e deve existir em cada Estado uma irresistível, absoluta, e incontrolada autoridade, em que o direito de soberania resida".

Que pudesse ser igual, interna e externamente, em todos os Estados, foi desmentido por supremacias, por impérios, por multiplicação das formas de regimes estaduais, até que, sobretudo no século passado, as experiências, algumas dramáticas como as guerras mundiais, inspiraram a criação de grandes instituições multilaterais que pudéssemos aceitar como salvaguardando melhor, na ação, a igual dignidade dos povos e Estados não obstante a hierarquia dos poderes. Foi a base da Sociedade das Nações, foi, depois de mais uma tragédia mundial, a inspiração que presidiu a criação da ONU e suas dependências e derivados, e até aparentemente os grandes blocos militares. Chegamos porém a uma situação, neste século cheio de riscos, em que tais instituições parecem sofrer de bloqueio, com o Conselho de Segurança impotente para colocar um ponto final no que cronistas vão chamando guerra em toda a parte, dúvidas sérias, causadas pelos EUA, sobre a defesa inadiável contra as agressões climáticas, destacando-se a debilitação do todo ocidental, não apenas pelo incerto brexit britânico, também pelas dificuldades na formação dos tratados que envolvem, designadamente, a União Europeia, o Canadá, as inspirações do presidente dos EUA, tudo afetando as esperanças nascidas do fim da Guerra Fria.

O que parece crescer, contra o otimismo do mestre Fukuyama, é que o multilateralismo não representou, como se imaginou, pela imagem que divulgavam, estarmos no "fim da história", segundo a análise brilhante de Delphine Placidi-Frot, já neste 2018, que ao tema se dedicou no L"État du Monde deste ano, e que seguirei de perto, evidenciando que o exame de cada instituição multilateral demonstra uma eficácia variável das parcelas, mas não oculta a crise das esperanças que apoiaram as primeiras tentativas de governança do globalismo, ainda quando estas surpreenderam pela louvável ação dos responsáveis pela sua formação ou gestão.

A autora, o que consegue enumerar, num trabalho árduo, são dificuldades de ordem organizacional, o que para a Europa parece evidente, pelo que não surpreende que se multipliquem as propostas de alterações, animadas pelo espírito que orientou o chamado programa Delivery as One, da ONU em 2005, contrariado pela inércia ou rotinas que são os adversários do espírito institucional, evidenciando a necessidade de uma revisão das estruturas jurídicas, o culto do respeito pela legalidade dos procedimentos, enfrentando as questões financeiras habituais, incluindo o excesso mal justificado dos custos, sem que um poder judicial a criar possa intervir. Que seja possível ter uma sociedade global justa, quando a evolução impõe o globalismo, mas sem que as suas estruturas de governança sejam funcionais, respeitadas, eficazes, implica que a definição de soberania seja reavaliada, em termos de a igual dignidade dos povos não ser, apesar da diferença de poder, ofendida, objetivo que nem sempre existe nas propostas, e que, existindo, frequentemente é esquecido no exercício, provocando a mais inquietante das crises defensivas, que é transformar a memória do passado em projeto de futuro.

A União Europeia está ela própria a ver crescer a exigência de renovação, propondo medidas, na segurança, na justiça, na economia, nas relações internacionais, com a omissão de não assumir que a soma dos projetos se traduz na formação de um governo, o que não se vislumbra que possa abrir caminho sem clara intervenção dos Parlamentos e eleitorados estaduais, o que exige um método que elimine a criação de órgãos sem consagração legal, e sem participação dos Parlamentos dos Estados membros.

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