O silêncio dos dependentes
Portugal aderiu à Comunidade Económica Europeia por duas ordens de razões: garantir que o país ficava, indubitavelmente, do lado Ocidental da Guerra Fria, e procurar apoios (fundos) para se modernizar. A Europa foi, para Portugal, a democracia e o progresso. E poucas perguntas.
Mais de 35 anos depois, a União Europeia é profundamente diferente. Para lá da agricultura e das pescas, das liberdades de circulação e da criação de um mercado interno, há uma moeda comum, fronteiras partilhadas, financiamento da inovação, e uma dimensão externa que a Europa não tinha, num mundo muito mais instável e hostil do que era há 30 anos. Aquilo que nos interessava na Europa, há 35 anos, é hoje em dia uma parte muito menor da política europeia. O país, no entanto, parece ter decidido ignorar essa transformação.
A atual Comissão Europeia, cujo mandato termina em 2024, apresentou, desde o início, um programa de trabalho ambicioso e transformador. Conceptualmente, a Comissão presidida por Ursula von Der Leyen acredita que a aceleração da transição Verde, além de servir objetivos de resposta às alterações climáticas, permitirá à Europa liderar uma "economia verde" emergente, por virtude da legislação e da conjugação de investimento público e privado. Há, porém, pelo menos duas questões que se colocam a esta estratégia. Deixando, por um momento, de lado a dimensão ambiental, criar obrigações e forçar a mudança não é garantido que faça dos europeus, ou de todos os europeus, líderes no que quer que seja. Podemos inovar e liderar no uso de novas tecnologias, novas energias, novas formas de produzir. Ou podemos consumir mais caro. Ou podem uns europeus fazer uma coisa e outros fazerem a outra. Com as divergentes consequências que se imaginam.
A outra prioridade desta Comissão é a transição digital. Aqui a UE reconhece que parte atrás dos restantes atores internacionais e tem, internamente, posições divergentes. França, e o seu comissário (que tutela as direções gerais do Mercado Interno, das Redes de Comunicação, Conteúdos e Tecnologias e da Defesa) acreditam numa política de promoção e proteção das empresas europeias, conjugada com a antecipação da regulação da economia digital face aos outros mercados, e num efeito de arrasto provocado pelo investimento na indústria de defesa. De novo, daqui podem resultar processos substancialmente diferentes. Uns, podem aproveitar para promover as suas indústrias, apesar da concorrência e, eventualmente, dos interesses dos consumidores. Outros, podem perder a oportunidade de serem parceiros europeus das multinacionais. E alguns aproveitarão para inventar novos serviços.
A par destas duas linhas fundamentais, há outros aspetos de relevância que orientam e condicionam a política europeia: o regresso da discussão sobre as regras orçamentais e a ação do Banco Central Europeu, os novos recursos próprios da União Europeia e a possibilidade de renovar instrumentos de financiamento comuns da responsabilidade da União. Está, também, a caminho a revisão das regras da concorrência, com visões divergentes em vários Estados membros, e um ímpeto mais protecionista na avaliação dos acordos comerciais, a alteração das prioridades no uso dos fundos europeus e um pilar dos direitos sociais crescente e cada vez mais abrangente.
Está, portanto, em curso uma enorme transformação da União Europeia, a par de uma não menos significativa alteração da ordem mundial. Ou seja, e para sermos claros, o mundo em que aderimos e aquele em que a União Europeia cresceu já não existe, e os planos da Europa são os mais transformadores de sempre.
Às portas de um novo ano, podíamos prometer que em 2022 íamos conversar sobre o impacto destas alterações todas para Portugal. Sendo que o mais provável é que fossem daquelas promessas de janeiro, que nunca se cumprem. O costume.
Consultor em assuntos europeus