O que de facto nos divide

Sobre a Guerra na Ucrânia, como nas eleições francesas, está à mostra o grande equívoco dos últimos anos: o verdadeiro antagonismo não é entre radicais de esquerda e de direita, é entre moderados e radicais, entre pró-ocidentais e iliberais. Entre os que defendem inequivocamente o direito da Ucrânia escolher o seu destino junto das democracias ocidentais e os que detestam a NATO, a América ou a globalização tanto ou mais do que a Rússia de Putin; entre os que são contra o sistema, como Le Pen, Zemmour e Mélenchon, e os que o representam, no caso, essencialmente Macron.

É possível ter diferentes interpretações sobre o que explica a invasão russa da Ucrânia e sobre como viver ou conviver com a Rússia (ou a China) e, ainda assim, concordar no essencial: a vontade de pertencer à União Europeia e a necessidade de se sentir protegida da Rússia pela NATO é um direito que a Ucrânia tem, não é uma afronta e uma provocação a Moscovo. Assim como, ao centro, quem defender diferentes políticas económicas, sociais, de migração, mas reconhecer o essencial das virtudes do sistema, da União Europeia, do capitalismo democrático tinha algumas escolhas nas eleições francesas, mas nenhuma era Le Pen (Zemmour) ou Mélenchon.

Nos últimos anos, o espaço público e a discussão política polarizaram-se criando a ilusão de que a escolha era sempre entre os radicais à esquerda e à direita e os temas onde divergiam, das migrações e refugiados às questões de género ou de sexo (conforme a orientação política), da inexistência das alterações climáticas à ideia de que só o fim do capitalismo salvaria o planeta. No fundo, temos vivido como se o confronto fosse sempre o mesmo e tivéssemos sempre a escolher entre Bolsonaro,Trump e Órban, ou Pablo Iglesias, Varoufakis, e Jeremy Corbyn. Independentemente do que estivesse de facto em causa.

A guerra na Ucrânia e as eleições francesas exibiram como essa dicotomia era falsa, ainda que conveniente a alguns moderados mais táticos.

Na Ucrânia, fora do consenso estão, nos extremos da esquerda e da direita, uns mais envergonhadamente que outros, os que acreditam que a culpa tem de ser da NATO, dos americanos, da ideia de Ocidente ou dos globalistas liberais, a que Putin e outros autoritários se opõem. Não é que Varoufakis e Trump pensem a mesma coisa, ou Órban e Jeremy Corbyn, mas têm os mesmos inimigos e ódios.

O mesmo se passa em França. Mélenchon e Le Pen(como Zemmour) detestam-se genuinamente, e divergem quanto ao clima, às migrações e às liberdades individuais. Mas coincidem no ódio à globalização, à tradição americana, e às democracias liberais.

Se olharmos o mundo pela lente da divergência entre os radicais, de um lado estão Trump, Órban, Bolsonaro, Le Pen e companhia, os que detestam os migrantes, os refugiados, os islâmicos, a globalização ou as liberdades. E do outro estariam Varoufakis, Corbyn, Lula e Mélenchon, que odeiam o capitalismo, as democracias burguesas, a liberdade económica e a NATO.

Se olharmos o mundo pela lente da divergência entre moderados e radicais, vemos que de um lado estão os que detestam o mundo ocidental, democrático e liberal em que vivemos, e do outro estão os que divergem em quase tudo menos no fundamental: que é dentro deste mundo das democracias liberais de tipo ocidental e do amplo modelo económico capitalista (uns criticando a sua suposta deriva neo-liberal, outros a sua irremediável tendência para o estatismo) que as escolhas se fazem.

A guerra da Ucrânia tornou transparente a verdadeira divergência, as eleições francesas permitem quantificá-la (pelo menos no segundo mais importante país da União Europeia).

Consultor em assuntos europeus

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