"Nosso, caras pálidas?"

Um correspondente português no Brasil, cujo nome será omitido, foi confrontado pelas duas filhas gémeas pré-adolescentes, já nascidas no gigante sul-americano, com a seguinte sentença, ouvida na escola, na rua, na TV, enfim, para usar expressão da moda, em todo o lado ao mesmo tempo: "Os portugueses roubaram o nosso ouro!".

Num episódio de Lone Ranger, série exibida no Brasil nos Anos 60, o herói de mascarilha, ao ver-se sem munição, encurralado entre Comanches, resume ao inseparável amigo o ponto da situação: "Tonto, nós estamos perdidos!". Ao que Tonto, um Comanche que era tudo menos tonto, responde com uma pergunta: "Nós quem, cara pálida?".

A resposta irónica ganhou o quotidiano brasileiro. Exemplo: numa charge de jornal, durante o impeachment a Dilma Rousseff, a presidente lamenta-se para o vice: "Temer, nós estamos perdidos!". Ao que Temer responde: "Nós quem, cara pálida?".

Para a pergunta das filhas, o jornalista em causa não poderia deixar de se valer da oportuna expressão de Tonto: ""Nosso ouro"? Nosso de quem, caras pálidas?". "A não ser que vocês pertençam a alguma tribo originária do Brasil, tipo Tribo dos Moreiras [o apelido delas é Moreira], quem são vocês para reclamarem o ouro como vosso? Faz sentido, os filhos do suposto ladrão de ouro exigirem o ouro?".

O caso aplica-se não só a estas descendentes diretas de um natural do país colonizador, mas também a todos os mais de 80% descendentes indiretos que, de apelido Silva, Sousa, Oliveira e outros, espalham na escola, na rua, na TV, enfim, em todo o lado ao mesmo tempo, que são os legítimos beneficiários do ouro roubado por gente de apelido Silva, Sousa, Oliveira e outros de quem carregam o sangue.

E o "nosso de quem, caras pálidas" é válido ainda para os imigrantes: ou será que recém-chegados há 150 anos ao Brasil têm direito a reclamar ouro do tempo em que o país ainda era chamado de Pindorama?

Sem paciência para argumentações, como é comum na geração TikTok, as filhas optaram pela provocação mais direta: "Ok, ok, mas afinal quando é que devolvem o nosso ouro?".

"Já, já!", respondeu o pai. "Estamos só a aguardar os trâmites legais da devolução das riquezas levadas do espaço hoje chamado de Portugal por suevos, godos, visigodos, romanos, fenícios, cartagineses, mouros, celtas e demais colonizadores, assim que eles pagarem, nós transferimos logo".

Elas sublinharam ainda que, "em rigor", todo o Brasil pertence aos indígenas e não aos ocupantes chegados em 1500 e depois. Têm razão. Mas, "em rigor", a casa onde elas vivem deve então ser devolvida aos povos originários. Assim como, por coerência, todos os que chamam os colonizadores de usurpadores deveriam devolver os seus apartamentos a quem cá estava antes - os imóveis são, "em rigor", dos indígenas, não deles.

Como o tema colonização, ainda para mais cruzado com os horrores da escravatura, é sério demais para "lacrações" - a gíria da juventude brasileira para designar o fim de uma discussão com frases de efeito - o pai português disse às filhas brasileiras que é um admirável progresso tentar contar-se a História do Brasil mais do ponto de vista do oprimido, os indígenas, e menos do ponto de vista do opressor, os colonizadores.

E que um diálogo entre pai, mais velho, e filhas, mais novas, como o diálogo entre países mais velhos e nações mais novas é sempre bem-vindo desde que sem argumentos tontos.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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