Justiça Penal Internacional Haia, Moscovo e Cartum: Um conto de três cidades

A epígrafe Putin, The Hague is waiting for you - em português, Putin, Haia está à tua espera - retumbou nos últimos meses como prenúncio de uma possível atuação do Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede naquela cidade holandesa, contra Vladimir Putin por crimes alegadamente cometidos no contexto da atual agressão russa contra a Ucrânia.

Dado que nem a Ucrânia, nem a Rússia são Estados Partes do Tribunal, Haia (melhor dizendo, o TPI) não poderia, em princípio, exercer jurisdição sobre os crimes possivelmente cometidos neste conflito. No entanto, a Ucrânia já havia depositado duas declarações junto do TPI reconhecendo a respetiva jurisdição. Estas declarações individuais estão em conformidade com as regras que regem o TPI, definidas pelo Estatuto de Roma, segundo o qual, todos os Estados que não sejam Partes no Estatuto podem voluntariamente aceitar a jurisdição do Tribunal. De resto, desde março do ano passado 43 Estados Partes, incluindo Portugal, encaminharam também a situação da Ucrânia para o Tribunal.

Na gíria própria do TPI uma situação é, essencialmente, um contexto em relação ao qual poderão vir a ser iniciadas investigações. Este contexto pode resultar, por exemplo, de um conflito armado ou de uma campanha de violência. Assim, o TPI passou não só a poder exercer a sua jurisdição em relação a esta situação, como, em concreto o Gabinete do Procurador passou a ter a obrigação de averiguar e avaliar a informação existente.

A 17 de março de 2023, o TPI emitiu um, mundialmente noticiado, mandado de detenção contra Vladimir Putin, presidente da Federação Russa, e Maria Lvova-Belova, comissária para os Direitos das Crianças no Gabinete do Presidente. O mandado abrange os crimes de guerra de deportação ilegal de população (crianças) e de transferência ilegal de crianças dos territórios ucranianos ocupados pela Rússia (estes crimes estão precisamente previstos e são também punidos pelo Estatuto de Roma do TPI).

No caso concreto de Putin, o mandado foi emitido porquanto as juízas e os juízes do TPI entenderam haver motivos suficientes para crer no respetivo envolvimento nestes crimes como autor e coautor direto e indireto e, ainda, como superior hierárquico. Os crimes terão ocorrido, pelo menos, desde 24 de fevereiro de 2022.

Estas infrações implicam igualmente violações graves das Convenções de Genebra de 1949, que preceituam as regras do chamado Direito Internacional Humanitário, ou se quisermos, menos eufemisticamente, as normas da guerra. A Federação Russa ratificou as Convenções de Genebra.

Mas regressando a Haia, este passo do Tribunal motivou os esperados debates em torno das questões simbólicas e legais que o mandado pode levantar. Uma destas questões prende-se diretamente com o facto de Vladimir Putin ser presidente em Moscovo. Por outras palavras, Putin não só é nacional de um Estado que não é Parte do TPI, como é, concretamente, presidente, em exercício de funções, daquele Estado.

Este facto suscita a persistente e bastante disputada questão de saber se Putin tem imunidade pessoal. Esta imunidade é reservada a um grupo muito limitado de pessoas em consequência da função desempenhada e, no caso de se verificar, obsta a uma acusação penal tanto por atos cometidos no exercício das funções, como por atos privados A imunidade não é concedida para benefício pessoal, mas para assegurar o desempenho efetivo das funções em nome dos seus respetivos Estados.

"Putin não só é nacional de um Estado que não é Parte do TPI, como é, concretamente, presidente, em exercício de funções, daquele Estado. Este facto suscita a persistente e bastante disputada questão de saber e Putin tem imunidade pessoal."

Chegando aqui, talvez seja oportuno fazer uma viagem até Cartum, capital do Sudão, e lembrar que na história do TPI existe outro caso que, quem sabe, nos pode ajudar a ler esta dimensão do mandado de detenção contra Putin.

Antes de Vladimir Putin houve Omar al-Bashir. Em 2009 e 2010 o TPI emitiu dois mandados de detenção contra Al-Bashir, à data, presidente do Sudão. Os mandados de detenção compreendiam crimes de guerra, crimes contra a Humanidade e genocídio, alegadamente cometidos no Darfur, pelo menos, entre 2003 e 2008.

O Sudão não é Estado Parte do TPI. Contudo, o Estatuto de Roma também prevê a possibilidade de o Conselho de Segurança das Nações Unidas remeter uma situação para o Tribunal, mesmo que esta respeite um Estado não-Parte. Em 2005, a Resolução 1593 do Conselho de Segurança encaminhou a situação do Darfur, no Sudão, para a jurisdição do TPI.

Apesar dos mandados de detenção emitidos pelo TPI, Al-Bashir visitou dezenas de países. Notoriamente, passou por mais de uma mão-cheia de Estados Partes do TPI. Segundo as regras do TPI estes Estados teriam a obrigação de cooperar com o Tribunal. Contudo, nenhum dos países fez cumprir ou conseguiu fazer cumprir o mandado de detenção e Al-Bashir acabou sempre por regressar à capital sudanesa.

Da saga Al-Bashir brotaram diversas decisões judiciais, nem sempre coincidentes nos seus argumentos e conclusões. Porém, em 2019, uma decisão do TPI, que se debruçou sobre a não-cooperação da Jordânia na detenção de Omar al-Bashir, parece ter atado alguns dos fios soltos.

Grosso modo, a decisão determinou que segundo o costume internacional a imunidade de chefes de Estado não existe frente a um Tribunal Internacional. Além disso, entendeu o Tribunal, a inexistência de imunidade frente a jurisdições internacionais também se materializa nas relações horizontais entre os Estados. Assim, estes devem, sempre que lhes seja solicitado por um tribunal internacional, deter e entregar o chefe de Estado de outro Estado. Este último ponto é do maior interesse prático na medida em que as regras do TPI não permitem julgamentos in absentia, ou seja, um julgamento só poderá ter lugar com a presença da arguida ou do arguido em Haia.

Ainda quanto a este tema, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) - outro Tribunal com a sua sede em Haia que decide questões que dizem respeito a Estados - tomou também uma posição. A decisão surgiu num caso que opunha a República Democrática do Congo e a Bélgica. Este caso dizia concretamente respeito a um mandado de detenção emitido por um juiz belga contra o ministro dos Negócios Estrangeiros da República Democrática do Congo.

Em 2002, o TIJ entendeu, em linhas gerais, que a imunidade do ministro congolês se observava perante os tribunais nacionais de um outro Estado. Porém, e mais importante, o Tribunal notou também que os chefes de Estado, os chefes do governo e os ministros dos Negócios Estrangeiros, apesar desta imunidade, podem ser julgados em certos tribunais internacionais - como por exemplo, o TPI ou uma outra jurisdição internacional estabelecida para o efeito.

Assim, muito resumidamente, estas decisões determinaram, por um lado, que os chefes de Estado não gozam de imunidade face a um tribunal internacional, e que, por outro, os Estados devem cooperar com esse tribunal internacional na execução dos mandados de detenção que digam respeito a arguidos nesta posição.

Em contrapartida, e não obstante a importância das decisões aqui mencionadas, a verdade é que estas não esgotam as respostas à questão da imunidade de chefes de Estado. Este texto, que se quis meramente informativo, não pode tratar com pormenor neste debate, mas não pode também deixar de notar que este está longe de se ter cristalizado.

Para terminar voltemos, ainda mais uma vez, a Cartum. Omar al-Bashir já não é presidente do Sudão, foi deposto por um golpe de Estado em 2019. Desde então as autoridades sudanesas têm mostrado vontade de cooperar com o TPI. Assim, mais de uma década depois de terem sido emitidos dois mandados de detenção com o seu nome, Al-Bashir poderá vir a ser entregue ao Tribunal para ser julgado por crimes internacionais.

Advogada e doutoranda em Direito Penal Internacional na Universidade de Göttingen.

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