Dinâmicas

Li um artigo da Madalena Sá Fernandes que tinha por título "Casem-se e deixem os outros em paz.". Argumento: precisamente as dinâmicas. E foi à Madalena que fui buscar, portanto, as dinâmicas. Agora para lhes dar extensão e fazê-las sair dos casamentos.

Porque as dinâmicas, ao contrário do que se possa pensar, não aparecem apenas nos casamentos.

As dinâmicas aparecem por todo o lado.

Vamos a um jogo de futebol e naquele intervalo em que podíamos debater a primeira parte, pausadamente, conviver com amigos, beber uma cerveja descontraidamente temos de levar com um inferno de dinâmicas, gritos, cantores, majoretes, concursos e tudo o que não nos deixa conversar. Até perdemos golos com as ondas dinâmicas.

Vamos a um lado qualquer de avião e as dinâmicas sucedem-se. Desde rifas a sorteios, a vozes estridentes, a compras, a vendas e quejandos, temos de apanhar com tudo. Até com os lugares apertadíssimos que impossibilitam quer não encostar a perna descaradamente na da senhora do lado quer não anasalar banhos tomados há mais de uma semana.

Vamos a um restaurante e multiplicam-se as dinâmicas. A banana flambé, feita à nossa frente, é apenas o bom das dinâmicas. O pior é todo aquele repertório dinâmico e apregoado de cor, ininterrompível, que coloca pratos em camas, que transforma sabores em fragâncias, que trata a sopa de cebola por soup d"oignon, que transforma presunto em flor de presunto (a flor do bicho, portanto), que promove degustação em detrimento de prova, que usa supréme por nada, e por tudo, que sabe apenas o que é créme brûllée porque esqueceu que existe leite creme, e que apregoa trocando, como sendo interessante, crocante por estaladiço, espuma de cacau por mousse de chocolate ou dumpling por bolo ou pastel. E isto não tem fim. Pergunta-se: será que nos deixam jantar em paz? Não sem nos submeterem a estas novas dinâmicas.

Vamos a um hotel e há mais happy hours que horas do dia. Uma hora para encontro com prova de vinhos. Uma hora para encontro a percorrer uns trilhos. Uma hora para encontro para jogarmos à cabra-cega com estranhos. Uma hora para encontro e irmos todos para a piscina fingir que estamos a fazer hidroginástica. Uma hora para encontro e todos jogarmos voleyball. Uma hora para encontro e todos socializarmos. O todos é a melhor expressão para todos. Todos desconhecidos. Todos os que estão no hotel. E lá estão as dinâmicas.

E se eu entrar na minha sala de aula eu acho que faço algumas dinâmicas não muito intrusivas. Ao ler o artigo da Madalena Sá Fernandes fiquei a pensar sobre se essas dinâmicas são mesmo necessárias e se são mesmo não intrusivas. Antes do covid usava com frequência uma bola de ténis em que no debate de um tema a bola ia saltando de mão em mão e cada qual teria de acrescentar um ponto de vista ou um argumento a esse debate. Uso um speed-challenge em grupo, para conseguir extrair o melhor do grupo, sua organização, liderança e habilidade de adaptação a tempos curtos e cronometrados para resolução de um caso de estudo. Uso trabalhos de 24 horas com enunciado relativamente livre e onde cada qual deverá construir pressupostos seus para completar o caso e levá-lo onde pretende. São novas formas de aprendizagem e nunca as tinha visto exatamente como dinâmicas (que não deixassem em paz) mas como formatos com impacto. Depois de ler e muito rir com "Casem-se e deixem os outros em paz" fiquei a pensar em como posso estar, involuntariamente, a não deixar alguém em paz.

Dito isto, às vezes dou por mim a pensar que ele há dias e horas em que talvez não fosse mau voltarmos uns anos atrás e usar apenas quadro, canetas e o eu mesmo. Com a minha calculadora. Nessa linha de abordagem, uma linha vintage, a coisa corre bem e deixo todos em paz. Quem quer acompanha. Quem não quer dorme. Quem ainda quer menos, não vem à aula.

É por estas e por outras que estes wake-up calls às vezes são bons. As dinâmicas serão boas se forem com conta, peso e medida. Mas a conta e o peso, o peso e a medida estão e dependem de cada um dos seres humanos que tenho à minha frente.

Diria que a Madalena é uma jovem que não gosta de dinâmicas. Mas apostaria em como a generalidade das pessoas hoje adoram dinâmicas. Porque fazem parte de um pacote experiencial, mais do que de serviço, que é o que a maioria procura. Um journey diferente. Uma vivência diferente. Mesmo que não os deixe em paz. Ou melhor, porque não os deixa em paz.

Presidente do Iscte Executive Education

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