Contornando a intervenção parlamentar
Está longe de ser, desde o final da II guerra, a primeira vez que os governos europeus lidam com momentos de especial pressão por parte dos EUA visando elevar o esforço militar deste lado do Atlântico. Há uma perceptível diferença de inspiração entre a linha de resposta agora acordada e a que o foi quando se negociaram os primeiros tratados comunitários.
No plano para que a presidente da Comissão Europeia obteve, há pouco, a anuência dos governos dos Estados-membros, um traço sobressai. O esforço previsto recai e é prosseguido por cada um dos Estados (são “planos nacionais”) e a solução de financiamento incentivada, com regras agora criadas, vai reflectir-se nas respectivas dívidas. Tem sido sublinhado que, desta opção, resulta necessária vantagem para a Alemanha (que se apressou a rever a sua Lei Fundamental para dela tirar partido), deixando em dificuldade acrescida os membros da UE com dívidas elevadas, nomeadamente os do Sul. Sem esse plano - e a insólita alteração constitucional no trânsito entre legislaturas -, não era crível que o novo chanceler já tivesse anunciado que o Estado alemão iria dispor do mais poderoso Exército da Europa.
Se recuarmos aos primeiros anos da década de 50, encontramos um outro quadro em que os EUA, tendo elevado os seus efectivos na Europa de 80.000 para mais de 350.000, reclamaram esforço compatível por parte dos europeus. Foi então que um conjunto de factores (entre eles a persistente resistência da França ao rearmamento alemão) propiciou a criação da primeira das Comunidades, a CECA. O carvão e o aço, recursos, ao tempo, essenciais para a guerra, ficaram colocados sob uma autoridade supranacional. E na sequência dessa criação, numa lógica de Defesa europeia, foi negociado com sucesso - e suporte americano - o tratado fundador da Comunidade Europeia de Defesa.
Assinado em Paris, o tratado visava a criação de um Exército europeu, inscrevendo a RFA e demais signatários numa estrutura supranacional, vinculada a um princípio de “cooperação estreita” com a NATO. É hoje fácil seriar deficiências e excessos nesse tratado - mas não foi nenhum dos seus eventuais defeitos que o condenou ao fracasso. Ratificado pelos Parlamentos de todos os outros Estados signatários, não o seria na Assembleia Francesa graças a uma singular convergência de votos (o PCF detinha então ¼ dos mandatos) e à prioridade conferida pelos gaulistas à defesa da posição imperial que a França conservava - a União Francesa.
Nunca poderemos saber onde nos teria levado a solução comunitária que naufragou em 54: sabemos porém que, logo na dúzia de anos subsequente, o império colonial que deu motivo ao abalroamento passaria à história.
Quanto ao actual plano, saberemos, em prazo bem mais curto, do efeito seguro na desigualdade de resultados na evolução das capacidades dos Estados, e dos riscos para o futuro da UE e associados.
Sem falar, por agora, dos Parlamentos nacionais, não foi um bom sinal que o regulamento há dias aprovado (SAFE), o tivesse sido apenas pelo Conselho, com supressão da passagem pelo Parlamento Europeu sob a controversa invocação de uma cláusula de urgência. Se faz parte do plano torná-lo facto consumado, contornando a intervenção parlamentar, menosprezam-se em excesso as consequências dos erros de partida. Esquecimento - ou lembrança do passado?
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico