Arguidos e o resto
Aquilo que provavelmente falta dizer com meridiana clareza: é muito fácil ser arguido em Portugal, suspeito de um crime e teoricamente sob investigação do Ministério Público; e é igualmente muito duro que tantas pessoas no exercício de cargos públicos, no Governo e fora dele, estejam efetivamente sob investigação pela eventual prática de crimes.
Detalhando, então.
Para se entrar no estatuto de arguido, em processo penal, no limite, basta ter havido uma denúncia de factos, reais ou falseados, que possam constituir um crime, e haver uma diligência investigatória diretamente do Ministério Público ou de um órgão de investigação criminal, procurando averiguar da realidade desse alegado facto. A constituição de arguido depende, pois, de uma opinião, de um parecer, de uma intuição de uma pessoa em concreto - ou, como sucede diversas vezes, até de pedido do próprio investigado, uma vez que, sendo arguido, passa a deter um conjunto de direitos processuais de defesa, e de defesa mesmo contra uma mentira, que tornam a sua capacidade de ação nesse processo mais efetiva.
Como um antigo procurador-geral da República comentava, já há alguns anos, as denúncias contra políticos chovem no Ministério Público - e, quase todas, são infundadas e resultam de más intenções tornadas processualmente ativas. Algumas não o serão, naturalmente. Mas retirar da constituição como arguido a prova de uma culpa absoluta por qualquer atividade criminosa é um abuso. E um abuso até estatisticamente comprovado: apenas 13% dos inquéritos por crimes iniciados pelo Ministério Público, onde haverá a constituição de arguidos (dados oficiais de 2021 da Direção-Geral da Política de Justiça), resultam numa acusação. E, mesmo após acusação, daqueles que são julgados, 33% dos arguidos acusados são considerados inocentes, ou seja, 21 mil pessoas em 65 mil naquele ano. Um terço dos acusados são inocentados em julgamento. E, na fase anterior, a da investigação criminal, apenas 13% dos processos, permitindo então a abertura de instrução ou a existência de um julgamento, seguem para essas fases.
Portanto, podemos de algum modo dizer que 87% dos arguidos, que até o Ministério Público considera cujas condutas nem sequer merecem acusação penal, devem ver reconhecida, já agora, alguma justiça no seu estatuto processual, desde logo porque podem ser arguidos durante muitos anos, sem nunca aliás saber exatamente do que são acusados ou por quem. E só este facto, da nossa realidade, numérico, deveria refrear a comoção coletiva, incitada por diversa comunicação social e pela facilidade do insulto como direito, quando se fala de uma constituição como arguido como anátema social inultrapassável.
Coisa diferente é o facto de demasiados governantes, autarcas e titulares de cargos públicos parecerem estar sob investigação. Isso resulta de quê? Do facto de sermos uma sociedade estruturalmente corrupta? De só elegermos e escolhermos pessoas de duvidosa idoneidade? De haver uma identidade absoluta e indissociável entre poder e crime? De quem exerce algum tipo de poder atrair sobre si calúnias e denúncias especialmente motivadas pela inveja ou pelo ressentimento? De o Ministério Público e as polícias gozarem hoje de uma autonomia e de meios que no passado escasseavam? Na verdade, não sabemos.
O que sabemos, como escreveu Rui Nunes, é que ao microscópio somos provavelmente todos terríveis. E sabemos também que, como em qualquer instituição humana, o Ministério Público, as polícias, os governantes, os autarcas e os dirigentes de serviços públicos, são todos potencialmente corruptíveis, como qualquer outro mortal. O que se pode fazer quanto a isso? Criar mecanismos de transparência, dar condições financeiras adequadas aos cargos, mas também esvaziar o peso da denúncia infundada e do comentário improcedente, especialmente na comunicação social. E, já agora, pôr também na prisão o criminoso condenado. Até porque a banalização de um alegado crime em funções públicas traz necessariamente a hesitação dos melhores e o cansaço dos sofríveis. E isso, sim, menoriza efetivamente qualquer serviço prestado à comunidade, essa mesma comunidade que se regozija de forma autofágica nos autos-de-fé diários à hora do jantar, mas pouco tem de diferente para oferecer.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa