Opinião
20 março 2023 às 07h00

Saddam Hussein e o seu interrogador

Mirko Stefanovic

Há poucos dias, a CNN publicou uma entrevista com George Piro, que foi agente do FBI e interrogou Saddam Hussein na prisão iraquiana durante sete meses. Ele é descendente de libaneses, prepara-se para publicar um livro sobre as conversas com o ex-homem forte iraquiano e a entrevista saiu obviamente como uma boa publicidade para a futura história.

Piro conta o que descobriu durante o interrogatório de Saddam Hussein tendo conseguido que este se abrisse com ele. É possível que o que venha a ser publicado no livro seja mais interessante, mas o que fez parte da entrevista revelou a maior parte do que muitas pessoas que estavam no Iraque na época já sabiam.

Uma vez que passei algum tempo em Bagdad, (quase cinco anos) durante a guerra entre o Iraque e o Irão (até 1988) e saí poucos dias antes da Primeira Guerra do Golfo em 1991, como membro da grande comunidade diplomática lá presente, eis o que já sabíamos sem interrogar o líder do país:

1. Saddam Hussein não tinha quaisquer armas de destruição em massa, independentemente das suas afirmações dirigidas aos altos funcionários iranianos como uma ameaça sem conteúdo real. Não só ele não era capaz de construir algo do género, como também tentou evitar a intervenção militar e económica ocidental.

2. Saddam Hussein não teve nada que ver com o ataque do 11 de Setembro ao World Trade Center em Nova Iorque em 2001.

3. Saddam Hussein não cooperava com a al-Qaeda, que era um seu inimigo muito perigoso, e estava determinado a não a deixar operar no Iraque.

4. Saddam Hussein foi um líder laico, que baseou a sua ideologia no programa do partido Baath, como um nacionalismo pan-arábico e iraquiano, independentemente da filiação religiosa.

5. Pouco antes do ataque dos EUA ao Koweit em 1991, para o libertar do Iraque, sabia-se que o exército iraquiano não se iria defender no território do seu vizinho até à fronteira iraquiana. Havia informações fundamentadas de que eles também não abasteciam as suas forças na fronteira entre o Koweit e a Arábia Saudita.

Assim, não se descobriu nada de espetacularmente novo a partir do interrogatório do ditador iraquiano que não fosse já do conhecimento de muita gente. Talvez o livro dê algumas respostas para mais perguntas, pois é importante descobrir a razão para que todo o projeto da Tempestade no Deserto tenha tido um sucesso militar tão fácil, mas em simultâneo um fracasso político. Dar uma resposta hoje é fácil: o exército dos EUA venceu a guerra militarmente, mas o Irão foi o vencedor na frente política. Essa era provavelmente a última coisa que os estrategas americanos tinham em mente quando começaram a ofensiva para derrubar o ditador iraquiano.

Para voltar ao início, é importante ao menos tentar entender por que Saddam Hussein decidiu, em 1990, invadir o vizinho Koweit? A resposta pode ser encontrada no seu estado de espírito após o fim da guerra Irão-Iraque, depois de oito anos de luta. Ele foi apoiado pelos países ocidentais, na esperança de que parasse a expansão iraniana no norte do Iraque e se aproximasse das monarquias do Golfo, com a sua ideologia islâmica xiita. O exército iraquiano fez exatamente isso, com muitas baixas (é bom não esquecer que o Iraque começou a guerra em 1980). Assim, Saddam esperava muito mais valorização do que recebeu, que deveria incluir a anulação das suas dívidas para com os Estados do Golfo e talvez incluir o Iraque no Conselho de Cooperação do Golfo. Claro que isso não aconteceu, na verdade foi o contrário. Segundo algumas informações, o Koweit aumentou a sua produção de petróleo, provocando a queda dos preços no mercado mundial e, ao mesmo tempo, do lucro iraquiano com a exportação de petróleo. A razão para isso pode ser encontrada no medo de que o Iraque se tornasse muito poderoso depois de desempenhar o seu papel positivo na guerra com Teerão e, portanto, deveria ser posto de volta "no seu lugar". Se alguém tivesse a oportunidade de acompanhar o comportamento de Saddam, saberia que foi provavelmente a raiva que levou o líder iraquiano a enviar o exército para o Koweit. Nada mais do que isso. Convém não esquecer, como bem disse Piro, que ele se via como o terceiro líder árabe mais importante (depois do profeta Maomé e de Saladino, às vezes até como primo de Hamurabi, governante da Babilónia).

Mas, o principal problema do que aconteceu no Iraque após a deposição de Saddam Hussein do poder foi a destruição do sistema de estabilidade do país e a sua substituição por nada. O partido Baath e o exército iraquiano foram dissolvidos, grupos políticos sectários chegaram ao poder e tudo foi preparado para fragmentar o país de acordo com a filiação religiosa. Uma coisa que Saddam estava a tentar construir no Iraque era o sentimento nacional, a pertença à nação e não à religião, e isso era óbvio para qualquer um que vivesse lá. A fragmentação do país foi uma espécie de presente para os governantes do Irão, que aproveitaram a oportunidade para se afirmarem como intervenientes importantes nos assuntos internos do Iraque, como resultado direto da intervenção dos Estados Unidos. Isso não era decididamente o que Washington esperava.

Para deixar bem claro, o governo de Saddam Hussein em Bagdad foi implacável, muitas pessoas desapareceram sem deixar rasto, foram usadas armas químicas, os seus genros foram mortos e não há dúvida de que ele foi o responsável por todos esses crimes. Mas analisando os resultados da intervenção militar externa, a ascensão do Estado Islâmico, as milícias divergentes, os movimentos políticos religiosos antagónicos, vê-se que o Iraque ficou bem longe dos objetivos dos EUA ao tempo do planeamento da invasão.

Investigador do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal