Opinião
12 maio 2021 às 22h09

Quem é a mãe que se esquece do filho dentro do carro?

Rute Agulhas

A resposta é simples: uma mãe que é humana. Face à mais recente notícia de uma criança esquecida dentro do carro e que acabou por morrer, logo vozes iradas se levantaram. Vozes acusatórias e julgadoras, centradas numa visão superficial da situação.

As mães ou pais que saem do carro e vão trabalhar, deixando um filho esquecido no seu interior, estão frequentemente sob um nível de stress muito elevado, sendo que as circunstâncias indutoras de stress podem ser muito variadas. Contrariamente ao que possa pensar-se, não são apenas as situações catastróficas, os desastres, as desgraças pessoais (como ser vítima de violência) ou familiares que podem gerar stress. Também os acontecimentos mais convencionais e que são habitualmente sentidos de forma positiva (como o nascimento de uma criança ou a entrada de um filho na escola), e até as tarefas rotineiras da vida quotidiana podem provocam tensão e mal-estar emocional, gerando stress.

Quando a exposição aos agentes indutores de stress é continuada, os recursos ativados podem esgotar-se, pois a capacidade de resistência, seja de uma criança ou de um adulto, não é ilimitada. Assim, mantendo-se uma situação de stress severa e prolongada, pode surgir a chamada fase de exaustão, caracterizada por um desequilíbrio físico e emocional que, em tantas situações, culmina em colapso.

As pessoas em exaustão e desequilíbrio podem apresentar reações muito diversas, envolvendo alterações fisiológicas, emocionais, cognitivas ou comportamentais. Algumas apresentam reações dissociativas, bloqueando a realidade e sentindo-se desligadas do ambiente que as rodeia, como se estivessem a viver num sonho ou separadas do mundo por uma barreira de vidro. Outra reação frequente envolve uma desconexão do seu próprio corpo e das suas emoções, e a pessoa vê-se a si mesma por fora, como se fosse um robô.

Não são raras as pessoas que afirmam sentir-se assim, como que a pairar pelos dias, assoberbadas em preocupações e cansaço extremo. E, neste contexto, o modo de piloto automático é ativado, permitindo que nos mantenhamos minimamente funcionais. Tudo o que sai fora da rotina habitual ou exige outro tipo de processamento cognitivo pode revelar-se algo muito difícil de fazer, mesmo quando falamos de algo aparentemente tão simples como ir deixar um filho a um determinado local.

Não conhecendo o caso em concreto, e não obstante a existência de muitas outras hipóteses que podem ser colocadas, importa alertar para a existência destas reações face ao stress. Reações que não podem nem devem ser confundidas com negligência e que exigem uma resposta terapêutica especializada.

Quem é a mãe que se esquece do filho dentro do carro?

Podia ser eu ou qualquer um de nós.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal