À Justiça o que é da Justiça
Como muitos outros católicos, fiquei triste pela reação da conferência episcopal ao relatório da comissão independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica em Portugal.
Tendo sido uma comissão criada pela própria Igreja, teria sido natural que a resposta fosse mais condizente com a expectativa dos resultados do estudo e sempre mais focada na situação das vítimas. Mais ainda porque, após a primeira reação, o comportamento de várias dioceses foi muito mais condizente com aquilo que esperava a sociedade portuguesa. Aliás, tive a oportunidade de escrever um artigo em que me solidarizei com as vítimas, assumindo também eu que deveria pedir perdão.
Passadas que estão estas semanas sobre o acontecimento, começa a surgir uma outra circunstância, menos esperada, daquilo que está incluído no trabalho realizado. Para além dos casos reconhecidos, em que há uma denúncia de factos, alguns com testemunhas e local definido, outros são meras acusações, algumas anónimas, sem qualquer referência concreta àqueles elementos. Não tenho dúvida de que esta comissão não poderia nem deveria descartar qualquer informação que lhe fosse passada e que, ao elencar os potenciais casos de abuso, seria muito imprudente, ou mesmo inaceitável, que não houvesse essa referência. Mas, partir desta lista de casos anónimos para pré-culpabilizar pessoas que poderão ser inocentes, não deixa de ser uma questão relevante em termos de justiça e, muito mais, num país em que a justiça tem um tempo de decisão que pode levar anos, pode destruir a vida de um cidadão sem que este tenha cometido qualquer ato condenável.
É naturalmente compreensível que, numa matéria com esta importância inquestionável, a atitude preventiva seja assumida e que todos aqueles que tenham suspeitas fundamentadas de comportamentos criminais sejam imediatamente afastados das suas funções, de forma a garantir a proteção de todas as potenciais vítimas destas inaceitáveis situações. Contudo, colocar uma suspeita criminal sobre uma pessoa, com base numa denúncia anónima, sem qualquer referência a local, circunstância, testemunhas ou qual o comportamento em causa, que terá ocorrido na década de 90 e que não tem qualquer outra referência até aos dias de hoje, é muito duvidoso que seja um comportamento aceitável num Estado de direito e que justifique a condenação social e pública sem julgamento.
Uma das grandes vitórias anunciadas pelo 25 de Abril foi mesmo o fim deste tipo comportamento: tornar impossível a criação de injustiças através de processos motivados por questões pessoais que nada têm que ver com as questões em análise. Que esta situação seja criada por uma comissão que dizem independente, provavelmente porque seria formada por pessoas com reconhecido conhecimento em questões da sociedade e da justiça e, portanto, com uma maior responsabilidade em não serem promotores de destruição de vidas sem um mínimo de base real para essa suspeição, parece-me profundamente preocupante. Tudo isto me levou a pensar que foi um erro ter inventado um caminho especial para resolver uma questão que já tinha uma forma institucional muito clara de ser resolvida e que está agora a ser utilizada pela Igreja em algumas das suas dioceses, e que seria ter entregado ao Ministério Público todos os casos suspeitos que fossem surgindo para que esta instituição os tratasse como crimes sendo a entidade competente para tratar deste assunto.
Por outro lado, a Igreja tem de assumir a sua responsabilidade sobre a forma errada e prejudicial com que lidou com esta situação no passado, tem de se preocupar em cuidar das vítimas e em garantir, como lhe for possível, que não voltem a acontecer.
Por último, gostaria de ver a comunicação social a pegar nas conclusões finais do relatório, depois das recomendações à Igreja, no seu ponto 8.3, sob o título "Algumas sugestões para a sociedade em geral", que, segundo as estatísticas conhecidas, representam mais de 90% destes crimes. Poderá não ser muito interessante para a promoção comercial das vendas jornalísticas, mas é seguramente fundamental para acabarmos com estes comportamentos terríveis no meio de nós.
bruno.bobone.dn@gmail.com