Às escuras
Sem luz, sem Wi-Fi, sem 5G, com a bateria do telemóvel quase a esgotar-se, o desabafo da minha filha mais nova, uma adolescente de plenos direitos, carregava na sua frustração o autêntico estado de alma de uma geração: “É o fim do mundo. O que vou fazer agora?”. Não faltavam livros para ler e até estava um belo dia lá fora para ser aproveitado, lembrei-lhe. Mas… “E o meu mundo? Não consigo falar com ninguém”.
Em dia de apagão, o choque geracional ganhou espaço de debate em muitas casas e permitiu a muitos pais e avós desfiarem memórias dos dias analógicos perante os dramas digitais que efervesceram naquelas horas sem eletricidade.
A paralisação de todo um país – no caso, de toda a Península Ibérica - foi um alerta brutal de como vivemos, hoje, enquanto sociedade hiperconectada, mas totalmente dependente e, logo, altamente vulnerável. Quando a luz foi embora, mais o Wi-Fi, o 5G e a bateria do telemóvel, foi-se também a nossa capacidade básica de “funcionar”. Sem sequer uma moeda no bolso, quantos de nós paralisámos?
Hoje, se nos cai a internet, parece que ficamos também sem autonomia. Muitos de nós não sabemos sequer o número de telefone dos nossos pais ou irmãos sem consultar o telemóvel, já não conseguimos pagar sem MB Way e a ideia de termos de nos orientar sem um GPS deixa-nos à nora.
Perante a perplexidade da minha filha, sempre chocada pelo quão pré-históricas soam as memórias de infância dos pais, lembrei-lhe que com a idade dela nem sequer telefone fixo tinha em casa, num tempo em que todos os dias eram simulacros de sobrevivência nos quais saíamos de manhã para a escola e voltaríamos, se nada de anormal acontecesse, ao fim da tarde, sem um WhatsApp por onde gritar por boleia se falhasse o autocarro previsto. Tempos em que, com luz ou sem luz, se convivia na rua com os miúdos e miúdas das casas vizinhas, dos quais hoje muitas vezes nem sequer sabemos o nome.
Mas também eu acabei “desmascarado”, sem um mísero cêntimo na carteira para poder ir comprar pão.
O “mic drop” geracional de sobrevivência chegou à noite, quando finalmente conseguimos falar com os avós, depois de horas preocupados, à distância, em perceber se precisariam de alguma assistência. “Tudo normal”, desarmaram-nos com uma absoluta tranquilidade. Notícias? Foram ouvindo no velho rádio a pilhas que continua a fazer companhia lá em casa. Jantar? Aqueceram-no no pequeno fogareiro que mantêm para os imprevistos elétricos e comeram à luz das velas que se habituaram a ter sempre guardadas. E ainda foram comprar água e fruta à mercearia, “com dinheiro no bolso”, claro.
No próximo almoço de família pensaremos todos duas vezes antes de nos rirmos dos avós infoexcluídos que não usam WhatsApp. Estes, pelo menos, sabem o que fazer quando falha a luz.