Crônica. Onde pulsa nossa latinidade?
Texto: Cristina Fontenele*
Uma reportagem recente da BBC divulgou que os latino-americanos são mais felizes do que o normal estatisticamente, apesar da situação econômica crítica de seus países. O motivo seria a forte capacidade relacional que não existiria em outras partes do mundo. Quem relatou esta conclusão foi o analista do Instituto da Felicidade de Copenhague, o espanhol Alejandro Cencerrado.
O pesquisador estuda há vinte anos o tema e escreveu, inclusive, o livro “En defensa de la infelicidad" (“Em defesa da infelicidade”), no qual discorre sobre a importância dos sentimentos negativos. Para Alejandro, os latino-americanos talvez exagerem a nota atribuída ao próprio bem-estar. Além disso, a proximidade das relações também ocasionaria nepotismo e corrupção nas empesas e instituições públicas. O fato é que nós, latinos, somos reconhecidos sim pela facilidade de criar vínculos.
Mas afinal, onde pulsa nossa latinidade?
No corpo, no idioma, na cultura, na mentalidade?
No “pode entrar que vou preparar um café”?
Em “fica para almoçar”?
No “aqui sempre cabe mais um”?
No sorriso largo distribuído sem economia?
Ou nos beijos e abraços destemidos em quem acabamos de conhecer?
Enquanto brasileira, observei minha alma latina expressar-se mais forte depois que migrei para Portugal. Moro com uma equatoriana, tenho uma amiga venezuelana, conheço colombianos, cubanos, chilenos, peruanos, argentinos, interajo com uma riqueza de sotaques e tradições. Incorporei arepas, tortilhas, burritos, cumbia, bachata, reggaeton ao menu da vida. Também levei meu cuscuz e baião de dois aos hermanos. É uma troca saborosa e sem medida.
Participar de outras dinâmicas e contextos culturais reforçou ainda mais a percepção de que no Brasil vivemos em uma espécie de bolha, de que há um distanciamento e até relutância em assumir a identidade latino-americana. Fruto, segundo os historiadores, da colonização lusitana e da forma de independência que o país teve. Entretanto, a despeito desse currículo, há todo um universo a ser experienciado em nosso continente.
Eu já me relaciono com a matéria há anos, desde quando trabalhei na Adital, Agência de Informação Frei Tito para América Latina. Enquanto jornalista, vivia imersa nas notícias referentes aos direitos humanos na América Latina. Ativismo, povos originários, movimentos sociais, Teologia da Libertação, meio-ambiente, questões de gênero eram pautas rotineiras. Apurar e escrever sobre a América Latina passava por uma profunda reflexão sobre economia, política, violência e esperança.
Ao perguntar à colega equatoriana o que é ser latina, ela me respondeu que não é apenas questão de geografia, mas uma combinação de cultura, história e formas de ver o mundo. Algo que vai além de estereótipos e se revela uma experiência pessoal, vivida de maneira única e que transcende fronteiras. “Ser latino significa provenir de una región marcada por el mestizaje: una mezcla de culturas indígenas, africanas y europeas que han dado forma a nuestras tradiciones, lenguas y formas de vida. Sobretudo, implica compartir una historia de resistencia frente a desafíos sociales, económicos y políticos.”, conclui.
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Já a amiga venezuelana me contou que, assim como eu, percebeu-se latina quando emigrou para Portugal. E, desde então, esta face converteu-se na sua identidade, orgulho e dor, nas suas raízes, com o bom e o mal. “Es una dualidad rara, entre estar agradecida con el lugar que me vio nacer y crecer, y luego triste, al darme cuenta de tantas cosas que me faltaron debido a la situación de mi país (motivo por el cual tuve que salir a buscarlas).”, reflete.
Na última semana, nós três fomos a um concerto de despedida do grupo de cumbia Rosa Mimosa y sus Mariposas, projeto que conheci em 2022, no Lisboa Village Underground. Foi uma verdadeira evocação à latinidade e a essa capacidade fácil e genuína de conexão que o analista da Dinamarca disse não identificar em outras partes do mundo.
Nessa noite, o nome do Brasil não foi citado, mas estávamos todos ali a celebrar, independente da origem, a tal da felicidade em estarmos juntos, vivos e livres. “Hasta la cumbia siempre!”.
*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho.
O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicado à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil.