16 julho 2016 às 02h15

"Todos em Espanha temos dois avôs que poderiam estar em campos opostos"

A Guerra Civil de Espanha começou há 80 anos.

Leonídio Paulo Ferreira

Enrique Moradiellos, historiador espanhol e professor catedrático de História Contemporânea na Universidade da Extremadura, acaba de publicar Historia Mínima de la Guerra Civil Española, um contributo para se compreender o conflito que está na origem do tempo presente do país

Faz 80 anos que começou a Guerra Civil. É assunto só dos livros ou está viva na memória dos espanhóis?

Está viva. Porque a Guerra Civil é a origem do nosso tempo presente. O regime que dela resulta dura 40 anos e acabou também há exatamente 40 anos. A ditadura de Franco é a institucionalização da sua vitória. Há ainda gerações que viveram a guerra. E as gerações que hoje mandam socializaram-se sob o franquismo. Portanto, não é falar como do feudalismo. É um elemento ainda integrante da cultura política do país.

Há pessoas a dizer que o pai ou o avô lutaram? Reivindicam os avós como parte de um dos campos da guerra?

Há de tudo. Porque ao longo destes 80 anos houve um cruzamento demográfico e social enorme. A Guerra Civil dividiu o país ao meio. Não foi uma enorme maioria contra uma pequena minoria. Houve muitos vencedores, tantos como os vencidos, e ao longo do pós-guerra chegou-se a um mecanismo social de superação que torna difícil dizer a que lado pertences. Porque todos em Espanha temos dois avôs que poderiam estar em campos opostos.

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A guerra começou com uma rebelião militar. E os nacionalistas acabaram por derrotar o governo republicano. De início, não era certo o desfecho?

Não. A guerra começa com o levantamento militar de uma fação enorme mas não esmagadora. Rebela-se apenas uma minoria da cúpula do exército, mas grande parte da oficialidade. Porém, em metade de Espanha fracassa o golpe. E o facto de o golpe em três dias deixar de triunfar em toda a Espanha causa a Guerra Civil. Porque só restam duas soluções: conquistar o que não foi ainda ganho; ou acabar com o golpe. Nesses três dias, um golpe militar mal planificado e mal executado provoca uma Guerra Civil, porque só consegue tomar metade de Espanha. Mas o que acontece à outra metade? Há que assaltá-la e esta vai defender-se.

Franco acaba por ganhar porque teve mais apoio externo do que a república?

Por vários motivos. Primeiro, Franco era um inferior dos generais que protagonizaram o golpe. A eliminação de competidores, tanto políticos como militares, oferece-lhe a liderança do bando rebelde. E há algo que é decisivo para que esse golpe, que fracassou pela metade, tenha capacidade ofensiva para atacar a outra metade: as armas. Em Espanha, não há indústria suficiente para uma guerra civil. E a primeira coisa que fazem os dois lados é pedir ajuda às potências estrangeiras, nomeadamente armamento e meios de combate. O recurso à internacionalização da guerra tem origem em Espanha. É no mesmo dia, 19 de julho, quando o governo republicano pede a Paris armas e aviões para esmagar uma revolta e Franco faz o mesmo pedido a Roma e Berlim. E consegue que lhe seja dada essa ajuda. O general Franco revela uma capacidade de iniciativa internacional que não têm os outros generais. Consegue não só ajuda militar como o reconhecimento por Mussolini e Hitler de que é "o nosso homem em Espanha". Todo o armamento enviado por italianos e alemães chega a Franco. Não vem para o general Mola, nem para o general Cabanillas. Vão para Marrocos. E aí Franco tem a capacidade de distribuí-lo e fazer atravessar para Espanha o melhor exército espanhol. Curtido no combate, consegue uma sucessão de vitórias que nenhum dos outros generais sublevados obtivera.

São as tropas espanholas de Franco, e as mouras, que vão decidir a guerra?

Sim, porque as tropas africanas são soldados recrutados entre os espanhóis, mais a Legião, tropa de choque, mais aquilo a que se chamava os indígenas, mouros, recrutados entre a população.

Há a lenda negra dos mouros. É justa?

Parcialmente, mas a lenda negra também abrangeria as tropas espanholas que aplicam de início as táticas de guerra da guerra colonial. O avanço das tropas desde Cádis e Sevilha, onde chegam os aviões e os barcos, subindo pela rota da prata até Badajoz ou pelo vale do Tejo até Madrid, resulta de operações de assalto próprias da guerra colonial. Não fazer prisioneiros e intimidar a população através de castigos exemplares, o que não só elimina o resistente ativo como mete um medo tremendo aos que estão na retaguarda.

E o que se passa em Badajoz, o famoso massacre de agosto de 1936?

A 15 de agosto dá-se a conquista de uma cidade onde pela primeira vez o comandante militar leal à república planificara uma defesa. Até então ninguém tinha enfrentado as colunas africanas. Sofrem bastantes baixas e no assalto final não poupam ninguém. É certo que houve um massacre, não de números tão altos como foi dito. Quatro mil mortos? Não era possível. Não havia jovens suficientes em armas em Badajoz.

Na praça de touros?

Sim, mas não só. Nas ruas, na zona das muralhas. No cemitério.

Houve também violência dos republicanos. Sobretudo contra a Igreja?

A Igreja tornou-se o protagonista simbólico de todos os males para o lado republicano. Há oito mil sacerdotes, monges e freiras que são mortos numa operação de limpeza do inimigo interno. Na Guerra Civil espanhola houve quase tantos mortos militares, ou seja, em operações de combate ou por bombardeamentos, como em operações de repressão, tanto ilegais como em tribunais. As mortes em combate não passaram de 200 mil. Mas as de repressão foram 100 mil pessoas pelo bando franquista e 55 mil pelo republicano.

Franco teve mais apoios externos. Mas a derrota republicana também se deve às lutas internas, certo?

O lado republicano é uma coligação instável de democratas que apoiam o governo de Frente Popular e a Constituição de 1931 e de revolucionários que não querem a Constituição. Estão aliados porque o exército insurgente reacionário vem em busca de todos eles.