
Alpinismo
Evereste. Por que razão há filas para chegar ao teto do mundo?
Não fosse o cenário, até podia ser uma longa fila para entrar numa sala de espetáculos. Por isso, as imagens são tão impressionantes: centenas pessoas querem, em simultâneo, aproveitar uma nesga de bom tempo para pisar o cume da montanha mais alta do mundo.
A solidão portadora de paz e tranquilidade anda por estes dias arredada do pico do Evereste. A montanha mais alta do mundo, com mais de 8 800 metros, faz lembrar o metropolitano em hora de ponta. Centenas que descem, centenas que sobem ao mesmo tempo. Há engarrafamentos no Evereste.
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A foto tirada pela alpinista Nirmal Purhja mostra bem a realidade que se vive por esta altura a caminho do pico - a fotografia vale mesmo mais do que mil palavras e mostra as dificuldades por que passam os alpinistas que nesta época se aventuram a pisar o teto do mundo.
As filas começam, contudo, a ser frequentes durante a temporada de escaladas - ninguém quer perder a janela de oportunidade que se abre com o bom tempo e o resultando é uma enchente de gente, em fila indiana, que tem um objetivo definido - chegar ao teto do mundo, superando os limites humanos.
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Mas nem todos conseguem terminar a aventura. Esta semana terão morrido, pelo menos, dez alpinistas. A Reuters já avança com 18. Não são apenas as condições naturais adversas que contribuem para a tragédia. A decisão de se lançar nesta empreitada sem condições físicas pode ditar a morte - escalar o Evereste não pode ser encarado como uma viagem turística. É muito, muito mais do que isso.

© Twitter Everest Today
Mingma Sherpa é presidente da Seven Summits Teks e conhecedor da realidade nas montanhas dos Himalaias. Garante que nestas temporadas, os alpinistas chegam a fazer filas que vão de 20 minutos a hora e meia para chegar ao pico. Sendo que um dos principais problemas é que podem esgotar o oxigénio ou ficar sem reservas - de O2 e de força anímica - para a descida.
Uma janela curta de bom tempo
A sobrelotação da montanha explica-se, segundo os guias, pelo aproveitamento das boas condições meteorológicas. Se o tempo está bom, não há alpinista que não queira tirar partido disso - um dos fatores que procuram é a ausência de fortes correntes de ar.
"Se há uma semana [de tempo seguro], o cume fica lotado. Mas às vezes, quando há apenas uma janela de dois ou três dias, fica sobrelotado", conta Mingma Sherpa à BBC.
Ralf Dujmovits é autor da outra fotografia, já com sete anos, que se tornou-se viral. O alpinista alemão chamou-lhe conga line de alpinistas no Evereste - uma alusão à dança em fila inspirada no carnaval cubano.

A imagem que Ralf Dujmovits captou em 2012 e a que chamou "conga line"
© Ralf Dujmovits
"Quando as pessoas têm que esperar em filas, correm o risco de ficar sem oxigénio - e podem não ter oxigénio suficiente para o caminho para baixo." Dujmovits sabe do que fala, atingiu o pico em 1992 e subiu oito mil metros em seis outras ocasiões.
O alpinista contou à BBC que em 1992 ficou sem oxigénio durante a descida e sentiu "como se alguém lhe desse com uma marreta de madeira". "Quando há ventos de mais de 15 km/hora não se consegue fazer sem oxigénio... estamos a perder muito calor corporal."
Turismo de alturas e roubo de oxigénio
O espanhol Sergi Mingote escreve na primeira pessoa no jornal El Mundo. "No início desta semana estava no campo base do Evereste, a mais de cinco mil metros de altitude, rodeado por 700 ou 800 pessoas, e só pensava: é preciso uma regulação, já. O Evereste é um sonho legítimo, a montanha é para qualquer um que queira conhecê-la, mas não se pode permitir estas enchentes nestes dias de bom tempo. As tragédias sucedem-se, há gente que não volta com as suas famílias. É uma situação que se deve repetir."
Mingote, embora considere que não é tarefa dos alpinistas mas sim das autoridades locais garantir a segurança dos visitantes, deixa algumas sugestões. "Para dar permissão para subir, podia exigir-se que antes o alpinista já tivesse subido uma montanha de oito mil metros. Assim, garantia-se um certo nível dos alpinistas e o número de pessoas que querem subir desceria talvez uns 90%. Porque hoje, a maioria dos que tentam subir não são alpinistas, são turistas de alturas. Pagam a uma empresa e formam uma expedição comercial."
O alpinista explica que o oxigénio engarrafado é fundamental. "O oxigénio não altera uma subida em 10%, 20% ou 30%, muda 100%. Eu diria que as botijas retiram 2 000 metros ao Evereste. Mas não quero banalizar. Apesar da ajuda, o risco ainda está lá e pensar que subir oito mil metros é fácil é um erro grave que causa mortes."
A agravar as adversidades naturais desta aventura, há atos humanos que podem considerar-se criminosos - o roubo de garrafas de oxigénio que são colocadas em certos locais estrategicamente para alguns alpinistas.
Maya Sherpa, em declarações à BBC, não tem condescendência e aponta o dedo a quem pratica este tipo de ações: "Roubar oxigénio a esta altitude não é menos do que matar alguém. O governo precisa de se coordenar com os sherpas [guias] para impor regras."
Os alpinistas sem preparação
Tal como considera o alpinista espanhol Sergi Mingote, também Andrea Ursina Zimmerman, uma guia de expedição que atingiu o pico do Evereste em 2016, entende que os "engarrafamentos" são causados por alpinistas sem qualquer tipo de preparação e sem condições físicas para empreender a escalada. O que põe em causa as suas vidas, mas também as dos sherpas que os guiam.
Norbu Sherpa, que é marido de Andrea e já chegou ao pico sete vezes, conta um episódio que podia ter custado vidas. A 8 600 metros de altitude, teve de se impor a um alpinista que, mesmo em estado de exaustão, insistia em chegar ao pico do Evereste.
"Tivemos uma grande discussão. Tive de lhe dizer que estava a arriscar a vida de dois sherpas, assim como a sua. O alpinista já não conseguia endireitar-se, tivemos que prendê-lo com cordas para descer. Quando chegámos ao acampamento base, agradeceu-nos."
"A descida é o verdadeiro pico"
Mesmo para quem não consegue atingir o tipo, não deixa de ser ainda mais importante acautelar a descida em segurança. Porque, ao acharem que cumpriram um objetivo, algumas pessoas se desleixam com esta fase da empreitada. O objetivo foi cumprido e esquecem-se que é preciso fazer o caminho de volta. Perdem a adrenalina, a motivação e até as forças.
"Ao longo dos anos, perdi muitos amigos que morreram durante a descida. Muitos acidentes acontecem durante a descida porque as pessoas simplesmente já não estão concentradas o suficiente - especialmente no caso do Evereste, onde há grandes multidões subindo e descendo", afirma, por seu turno, o alpinista Ralf Dujmovits.
Por isso, não tem dúvidas em afirmar à BCC: "O verdadeiro pico está no regresso ao acampamento base. Quando se está de volta, pode sentir-se o verdadeiro prazer do que alcançámos."
A sobrelotação sente-se sobretudo do lado nepalês do Evereste - a parte tibetana é mais fácil mas acaba por ser menos explorada porque o governo chinês emite menos licenças. Dizem os aventureiros, que a subida também é menos interessante.