Bolsonaro está entre a espada da justiça e a parede do vírus
Enquanto a "gripezinha" se transforma em colapso nos hospitais e em valas comuns nos cemitérios das principais cidades do país, avançam investigações policiais e judiciais que comprometem os filhos Flávio e Carlos, o que gerou a demissão de Sergio Moro
Na última terça-feira, o dia em que imagens de caixões sepultados em valas comuns no maior cemitério de Manaus em decorrência da pandemia de coronavírus correram mundo, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinava em Brasília uma investigação à manifestação anti-democracia a que Jair Bolsonaro comparecera no domingo anterior.
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Num intervalo de poucas horas, a "gripezinha", segundo o presidente, ganhou contornos de calamidade. E o cerco judicial em torno do núcleo do Palácio do Planalto apertou-se decisivamente no que viria a culminar com a saída do ministro da justiça Sergio Moro do governo.
Bolsonaro entrará em maio encostado à parede do vírus e sob a espada da justiça.
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"Essa manifestação, cujo eixo era o fecho do Congresso e do STF e o regresso da ditadura militar, foi um marco porque a partir dela as instituições, algumas entidades, parlamentares e partidos políticos deixaram de lançar apenas notas de repúdio a Bolsonaro e começaram a entrar com queixas crime e ações em tribunais", diz ao DN o cientista político Paulo Baía, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Uma das ações, do ministério público, pede a identificação dos organizadores e financiadores dessas manifestações e deixa o presidente numa situação de emparedamento".
O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF para apurar a eventual violação da lei de segurança nacional por "atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusivamente deputados federais". O intuito do procurador é saber quem organizou e financiou a manifestação onde se pedia o regresso da ditadura, um novo AI-5, numa alusão ao ato institucional que em 1968, em pleno regime militar, decretou a perda de mandato dos parlamentares, a censura e a tortura, e uma intervenção militar levada a cabo pelo presidente da República.
Segundo fontes próximas de Aras, caso fique provado que Bolsonaro ajudou a organizar ou financiar as manifestações ele pode vir a ser investigado. O vereador Carlos Bolsonaro, entretanto, é sobretudo visado: até porque a equipa policial que investiga a manifestação é a mesma que trabalha numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre fake news associadas ao governo e ambas podem desaguar no nome do segundo filho do presidente.
Dias antes, no dia 17, a Câmara dos Deputados, com quem a presidência vem mantendo um braço-de-ferro, estabeleceu um prazo de até 30 dias para o presidente apresentar o resultado dos exames que efetuou ao coronavírus, depois de ter estado em contacto com pelos 25 pessoas infetadas numa viagem oficial aos Estados Unidos.
Bolsonaro já se recusou por mais de uma vez a apresentar esses testes - no dia em que efetuou o primeiro, entretanto, revelou nas redes sociais ter testado negativo, com a imagem de um manguito a ilustrar, horas depois de o seu filho Eduardo Bolsonaro, deputado, ter dito (e desdito) à norte-americana Fox News que o pai estava com a doença.
Enquanto em aparições públicas a tosse do presidente vem levantando especulações, o vice-presidente Hamilton Mourão pediu para se confiar na palavra presidencial: "Seria o pior dos mundos o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois aparecer que deu positivo".
Caso o governo Bolsonaro deixe de responder ao requerimento da Câmara "sem justificação adequada ou passe informações falsas", o artigo 50 da Constituição prevê crime de responsabilidade. E isso, em última análise, poderia levar à abertura de processo de impeachment.
Uma terceira ameaça judicial paira sobre o presidente - ou, pelo menos, sobre o clã presidencial. Depois de ter tentado pela nona vez travar as investigações em tribunal contra si, o senador Flávio Bolsonaro viu o juiz Felix Fischer, do Supremo Tribunal de Justiça, decidir-se pela continuação dessas investigações.
Para o juiz, "há fortes indícios de materialidade e autoria de crimes e suposta formação de grande associação criminosa".
Flávio Bolsonaro é investigado por associação criminosa e desvio de dinheiro público num esquema de "rachadinha" enquanto vereador do Rio de Janeiro - desviava, com a ajuda do amigo de 30 anos do pai, Fabrício Queiroz, os salários dos seus assessores para contas suas e lavava o dinheiro, entretanto, numa loja de chocolates de sua propriedade, garante a acusação. Entre esses assessores estão familiares do recentemente assassinado Adriano da Nóbrega, um miliciano foragido da polícia.
Esse é o pano de fundo da demissão do diretor geral da polícia federal Maurício Valeixo, oficializada sexta-feira. Valeixo resistia às pressões de Bolsonaro para saber qual o andamento das investigações. Com a sua saída, o ministro da justiça e da segurança Sergio Moro também abandonou o governo.
Aos três casos judiciais - investigação da autoria da manifestação pela ditadura e CPI das fake news, apresentação compulsória dos testes ao covid-19 e a "rachadinha" do primogénito - somam-se os efeitos da pandemia às preocupações do presidente.
Como ele garantiu que o coronavírus não passaria de "uma gripezinha", investiu tempo e energia a sugerir a não cientificamente testada cloroquina como remédio milagroso para a doença e demitiu o popular ministro da saúde por este não acelerar o regresso às aulas e a reabertura do comércio, três visões entretanto desmentidas pela realidade, o avanço da doença conspira contra o seu governo.
"E segundo os especialistas, a pandemia não vai atingir de forma igual todo o país mas vai ser especialmente esmagadora nas principais cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus, Recife, Fortaleza", observa Paulo Baía.
"A crise política, ilustrada já pelos pedidos de impeachment de PT [de Lula da Silva] e por PDT [de Ciro Gomes], ganha agora o componente do drama social", diz. "E como ainda há as ações que emparedam o presidente nos tribunais, vamos ter um Bolsonaro cada vez mais fragilizado".
Estados em emergência
Cada dia nasce uma nova Lombardia no Brasil. Como no Amazonas, em cuja capital, Manaus, coveiros abrem e fecham com tratores valas comuns para enterros coletivos dada a explosão de mortes devido ao coronavírus.
E perto de um quinto dos doentes com covid-19 na cidade morrem em casa porque o sistema de saúde da capital do Amazonas está em ponto de saturação, com 96% dos leitos ocupados. O prefeito Arthur Virgílio aponta o dedo a presidente Jair Bolsonaro.
Em Belém, no Pará, o governador Helder Barbalho vai contratar clínicos cubanos para suprir o problema da falta de médicos, depois de ainda antes da sua posse Bolsonaro ter rasgado um acordo estabelecido no governo de Dilma Rousseff com médicos da ditadura caribenha para atender a população nos lugares mais recônditos do país.
No Rio de Janeiro, entretanto, onde há um novo caso a cada minuto e meio, a falta de respiradores já coloca aos médicos o mais cruel dos dilemas: escolher quem sobrevive e quem morre.
"Acabamos levando em conta o quadro geral do paciente para decidir quem fica com o respirador, é um tipo de escolha que mexe muito com a cabeça do médico do plantão, é muito dramático, todos ficamos muito abalados, mas é o que se vive hoje no Rio", contou por vídeo o médico Pedro Archer, do Rio de Janeiro.
Além destes estados, Amapá, Roraima, Pernambuco e São Paulo também estão em situação de emergência, de acordo com o ministério da saúde, uma vez que a incidência de casos supera em 50% a média nacional.
No total, até este fim-de-semana o Brasil registava mais de 50 mil casos e já perto de 4000 óbitos pela doença. No entanto, segundo especialistas o pico será em meados de maio.
No contraponto, no dia seguinte às tais imagens das valas comuns de Manaus, uma multidão invadiu o reaberto Neumarkt Shopping, em Blumenau, no sul do Brasil, sob aplausos dos lojistas, forçados pela direção do centro comercial a bater palmas, e o som de um saxofonista contratado para a ocasião.
Blumenau é em Santa Catarina, estado governado por Carlos Moisés, um adepto da flexibilização do isolamento social, eleito em 2018 pelo PSL, tal como Jair Bolsonaro.
Foi inevitável a comparação do saxofonista do Neumarkt Shopping com os violinistas do Titanic, que tocavam impávidos ante a iminência do naufrágio, dado o iceberg de evidências de que a pandemia é um caso sério e longe de estar resolvido.